Mandarim nos quadrinhos e no cinema: Entenda a razão por trás de como a Marvel adaptou o vilão
Mandarim nos quadrinhos e no cinema: Entenda a razão por trás de como a Marvel adaptou o vilão
As diferenças entre o Mandarim, de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, no cinema e nos quadrinhos!
Recém-lançado nos cinemas mundiais, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis inaugura uma nova franquia no Universo Cinematográfico da Marvel, dando um passo largo para a representação asiática no cinema de Hollywood – e ao mesmo tempo, o filme tenta corrigir alguns erros do passado ao apresentar Wenwu, o pai do herói titular, que também é o líder da organização dos Dez Anéis.
Muitos ainda se questionam sobre as decisões que levaram a Marvel Studios a transformar uma figura complexa como o Mandarim e adaptá-lo de forma tão diferente em relação aos quadrinhos – contudo, precisamos mergulhar um pouco mais profundamente na mitologia do personagem e nos estereótipos negativos que foram usados para construí-lo através dos tempos – e só assim teremos uma resposta definitiva para essa pergunta!
Estereótipos nos quadrinhos
O Mandarim foi criado nos quadrinhos da Marvel em 1964, nas páginas de Tales of Suspense #50. O vilão era um grande antagonista do Homem de Ferro e fazia várias tramoias para acabar com a vida de Tony Stark. Ele era um guerreiro lendário que possuía dez anéis, cada um com sua habilidade especial. E durante anos, ele foi tido como o maior inimigo do Vingador Dourado. Mas toda sua concepção é problemática ao analisarmos um escopo maior.
No começo do Século 20, o escritor e romancista britânico Sax Rohmer criou um personagem chamado Dr. Fu Manchu, que ficaria conhecido através de uma série de novelas que ele publicou. Tido como o maior e mais cruel vilão do mundo, o personagem foi composto através de vários tropos e estereótipos negativos com pessoas asiáticas, sobretudo chineses e japoneses.
Acontece que Fu Manchu não ficou limitado aos livros. O personagem serviu como base e inspiração para a criação de dezenas de vilões asiáticos, seja por sua concepção estética ou pelos trejeitos narrativos que eram carregados de preconceito e ideais racistas. E o Mandarim foi um desses personagens, criado em uma época onde os Estados Unidos queriam combater o comunismo a todo custo – o que tornava o país um adversário direto da China.
Não satisfeitos com o Mandarim ter sido inspirado no Fu Manchu dos livros, a Marvel ainda adquiriu os direitos de adaptação do personagem para os quadrinhos – e ele apareceu pela primeira vez em Special Marvel Edition #15, datada de 1973. Dessa vez, Fu Manchu era o nome do pai de Shang-Chi, o herói que durante anos ficou conhecido como Mestre do Kung-Fu.
As histórias do herói acabaram trazendo vários confrontos com Fu Manchu, até que a editora perdeu os direitos do personagem na década de 80. De lá para cá, ele continuou existindo nos quadrinhos, mas dessa vez com o nome de Zheng Zu – e alguns roteiristas têm tentado subverter as origens do personagem e sua conexão com o Fu Manchu de Sax Rohmer, escrevendo um personagem um pouco mais complexo.
Ainda assim, os mercados asiáticos – especialmente a China – sempre odiaram a representação de seu povo através da ótica racista dessa caricatura. Mesmo com a subversão, personagens como o Mandarim ou o Zheng Zu das HQs não são vistos com bons olhos por lá, e isso acabou desencadeando em uma série de decisões por parte da Marvel Studios na hora de adaptar um de seus maiores vilões para as telas.
Primeira tentativa nos cinemas
Em 2013, a Marvel Studios tinha acabado de se descobrir como um pote de ouro no fim do arco-íris. Um ano antes, Os Vingadores tinha quebrado recordes de bilheteria, tomando seu lugar de destaque entre as maiores receitas da história do cinema. Era hora de dar continuidade a essa franquia com o herói que deu início a ela, e foi assim que tivemos o polêmico Homem de Ferro 3, dirigido por Shane Black.
O filme foca em um Tony Stark quebrado e confrontado com a insignificância de sua existência em um mundo de deuses e monstros. Assim, ele parte para enfrentar o maior desafio de sua carreira (até então), quando acaba na mira de um terrorista internacional conhecido como o Mandarim, que de alguma forma estava atrelado aos Dez Anéis. Acontece que tudo não passava de uma piada.
No filme, o “Mandarim” – interpretado por Ben Kingsley – não passava de um ator fazendo uma grande distração enquanto Aldrich Killian, o líder das Ideias Mecânicas Avançadas, construía seu império criminoso através do Extremis, uma tecnologia que dava ao corpo humano capacidades regenerativas e explosivas. No fim das contas, o Mandarim era só uma farsa – e isso certamente irritou muitos fãs ao redor do mundo.
Parte da justificativa dessa decisão veio da necessidade de não sucumbir aos clichês e estereótipos, ao mesmo tempo em que o filme tentava fazer uma grande arrecadação na China. Por outro lado, essa ideia é embasada na trama, quando o próprio Killian fala sobre como os Estados Unidos sempre criam a figura de um “outro” para atacar, enquanto a ameaça está sempre debaixo de seus próprios narizes. É uma ideia boa, mas não colou.
Quem defendeu essa ideia recentemente foi o próprio Kevin Feige, que reconheceu os erros na abordagem mas ainda apoia as decisões de Homem de Ferro 3:
“Quando trouxemos esse personagem para as telas, nós queríamos fazer apenas quando sentíssemos que poderíamos fazer a justiça suprema com ele e realmente mostrar toda a sua complexidade, o que francamente é algo que não poderíamos fazer em um filme do Homem de Ferro, porque um filme do Homem de Ferro é sobre o Homem de Ferro; um filme do Homem de Ferro é sobre Tony Stark. Então, Shane Black, em seu filme e no roteiro que ele co-escreveu, inventou essa reviravolta divertida que amamos até hoje, onde [o Mandarim] acabaria sendo Trevor Slattery. E só porque aquela versão não era real, isso não significa que não há um líder da organização dos Dez Anéis, e esse é quem nós conhecemos pela primeira vez em ‘Shang-Chi’.”
A prova disso é que, meses depois do lançamento do filme, a Marvel voltou atrás no curta Todos Saúdam o Rei, lançado nos extras do blu-ray de Thor: O Mundo Sombrio. Aqui, vemos Trevor Slattery (o ator que faz o papel do Mandarim) encarcerado na prisão, quando é encontrado por um membro dos Dez Anéis. Ao fim, fica a sugestão de que tudo foi a mando de um “verdadeiro Mandarim” e que ele iria aparecer algum dia. Dito e feito.
Menos Mandarim. Mais Wenwu!
Em Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, os primeiros minutos da projeção são dedicados a contar uma breve história de Wenwu – um guerreiro milenar, que durante séculos conquistou os poderes dos Dez Anéis – os itens lendários – e dominou exércitos e dinastias. Ele continuou erguendo seu império criminoso, formando a organização dos Dez Anéis como uma forma de passar sua mensagem ao mundo, mesmo que continuasse nas sombras.
Eventualmente, ele larga essa vida ao descobrir o amor de Ying Li, uma guerreira vinda de um reino fantástico, com quem forma sua própria família. Mas o passado volta para cobrar suas dívidas com juros, e a amada de Wenwu é morta em um conflito com antigos rivais do vilão. Isso é o bastante para que ele volte à sua vida de crime e, não obstante, treine seu próprio filho – Shang-Chi – para se tornar o sucessor de seu legado.
À primeira vista, Wenwu é uma combinação de dois personagens. Ele representa o Mandarim, por carregar os Dez Anéis (que aqui, tomam a forma de braceletes lendários) e por comandar um vasto exército com punhos de aço – ao mesmo tempo em que ele também representa Zheng Zu/Fu Manchu, devido à sua ligação familiar com Shang-Chi. Porém, essas duas influências são subvertidas sob a atuação magistral de Tony Leung.
O personagem foi retrabalhado no filme, como afirma o próprio diretor Daniel Destin Cretton, para evitar a propagação do estereótipo racista do “Perigo Amarelo”, termo derrogatório que durante muitos anos, foi usado para se referir a pessoas asiáticas nos Estados Unidos e no resto do mundo ocidental. Levando em conta como a construção visual e narrativa dos dois personagens das HQs é problemática, a meta foi ressignificar esses elementos.
Assim, o filme prefere apresentar uma nova versão desse personagem, chamado Wenwu e que, em determinado ponto do filme, inclusive renega o apelido de “Mandarim”. Essas decisões foram tomadas tanto para trazer justiça, “corrigindo” erros de representação do passado, como também para auxiliar as vendas do filme na China, país que até hoje renega o estereótipo perpetrado por Fu Manchu na cultura pop.
E infelizmente, quanto a essa segunda parte, parece que não deu muito certo.
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis está em cartaz nos cinemas.
Abaixo, veja os melhores momentos do novo filme do MCU: