De Irmão do Jorel a Ninjin: Artistas brasileiros explicam como são feitos os desenhos no Brasil
De Irmão do Jorel a Ninjin: Artistas brasileiros explicam como são feitos os desenhos no Brasil
Gabriel Franklin, do Birdo Studio, e Fred Cassar, do Copa Studio, compartilham suas experiências
Nossa geração pode ter crescido com uma abundância de desenhos americanos e japoneses, mas era muito difícil ver a nossa própria cultura ser representada na tela da TV. Hoje, felizmente, essa realidade é muito diferente e desenhos produzidos inteiramente por brasileiros já vigoram nas grades das mais importantes emissoras infantis.
Sucesso de público, as animações feitas do Brasil vêm recebendo um destaque cada vez maior e chegam a ser cobiçadas pelo mercado internacional. Para entender melhor esse fenômeno, em especial como nossas animações são feitas, a Legião entrevistou dois artistas que trabalham nos maiores estúdios de criação do Rio.
- De onde surge o interesse por animação?
- Como é começar a desenhar?
- Como é feito o storyboard de um desenho nacional?
- Como um quadrinista se torna animador?
- Como é o processo de construção de cenários em uma animação?
- Como está o mercado nacional de animação?
De onde surge o interesse por animação?
Apesar de trabalharem em empresas e funções diferentes, ambos compartilham uma infância fortemente marcada pela animação, em especial a japonesa. Gabriel Franklin, diretor de animação na Birdo Studio, era fissurado em Digimon quando criança, uma inspiração que o motivou a seguir essa carreira posteriormente. “Quando as crianças falavam ‘O que você quer ser quando crescer?’ […] Eu falava ‘Eu quero ser desenhista de desenho animado.’”
Digimon se destacava entre os animes da época por trazer um foco maior no amadurecimento de seus personagens, o que mais tarde influenciaria Franklin a trabalhar com storyboard, onde há um contato maior com narrativa. “Isso eu levo comigo até hoje. Qualquer coisa que eu for criar eu preciso ter um desenvolvimento, no mínimo, que chegue perto ao que eu achei de Digimon.”
Já Fred Cassar, cenarista no Copa Studio, lembra ter passado muitas refeições assistindo os desenhos da TV Globinho, Nickelodeon e, em especial, do Cartoon Network — canal que hoje exibe um dos desenhos no qual trabalhou: Irmão do Jorel. “Eu assistia quantidades absurdas de Cartoon Network quando era pequeno. […] Era tipo… Esquisito. Era diferente. Todos eles tinham identidades muito únicas. ”
Como é começar a desenhar?
Mas, assim como Franklin, foram os animes, como Pokémon, Cavaleiros dos Zodíacos e Medabots, que lhe empurraram de vez para o caminho da animação. “Não dá para ignorar que quando eu realmente tive vontade de pegar e aprender a desenhar foi por causa de mangá e de anime.”
O primeiro passo para Fred, naturalmente, foi tentar copiar o que via nas telas e nas revistas de heróis que colecionava. Entretanto, reproduzir o que via sem nenhuma instrução foi um trabalho frustrante, ainda mais para uma criança. Outros colegas da escola também tinham interesse por desenhar e dessa troca de experiências de uma comunidade mirim sua técnica começou a evoluir. A instrução formal só veio muitos anos depois com a faculdade.
Franklin enxerga seu tempo na faculdade como um facilitador para entender o básico da profissão de animador 2D, cargo inicial que ocupou no Birdo Studio, mas precisou aprender muita coisa na prática para alcançar o nível de seus colegas de equipe. “Em um mês meu trabalho evoluiu [tudo] o que não tinha evoluído em dois anos de faculdade, sabe?”
Como é feito o storyboard de um desenho nacional?
Ao adquirir mais experiência, ele começou a trabalhar com o que realmente gostava: contar histórias. “A função de animador foi minha porta de entrada para conseguir outras funções dentro do estúdio, sabe?” Assumiu o cargo de storyboard artist, em projetos como Ninjin e Clube da Anittinha, e encontrou ali um jeito de expressar melhor sua criatividade.
No Birdo Studio, o trabalho de um artista de storyboard é traduzir um roteiro para o âmbito visual, destrinchar as cenas para que os animadores possam finalizar o produto final. O Franklin explicou em detalhes como é a rotina de trabalho:
“Tem várias etapas […] até chegar no storyboard animatic final. Primeiro, o diretor e o supervisor juntam com o artista de storyboard e fazem um briefing, o story launch, que o diretor já fala o que espera do episódio, se tinha uma cena que já sabe como resolver… A partir daí o artista do storyboard vai fazer os thumbnails — desenhos bem rascunhados do que vai ser o storyboard. Ele é revisado até que passa para o animatic — o storyboard só que em vídeo. São os desenhos já no tempo certinho do episódio, as vozes dos atores já ali… Vira esse grande rascunho em vídeo do que vai ser o episódio. Com isso pronto que a gente vai pra galera de animação.”
Para uma temporada de 52 episódios curtos de 11 minutos, padrão que vemos em grandes animações internacionais como Steven Universo, esse processo pode levar mais de dois anos.
E a demanda do estúdio é tão grande que não há muito tempo para descansar entre um projeto e outro. “Sempre tem aquele período, que às vezes dura uns cinco minutos…” brinca Franklin “de pegar aqueles personagens da série que você vai começar e praticar um pouco, fazer uns rascunhos dele. É como se fosse um músculo, sabe? Se você vai treinar seu braço, tem que alongar antes. Se eu vou desenhar esses personagens novos que eu nunca desenhei, deixa eu praticar antes de ir pro storyboard.”
Como um quadrinista se torna animador?
Para o Fred, entrar no meio da animação foi um processo bem diferente: ele começou a trabalhar com arte pelo mundo dos quadrinhos. “Eu estava num trabalho bem maçante. Nisso eu acabei descobrindo a cena canadense e americana de webcomics. […]Eu lia obsessivamente e pensando: ‘Isso aqui é um cara em seu apartamentinho em Toronto, com outros amigos que fazem a mesma coisa, criando um universo uma página por semana e as pessoas acompanhando.’”
Perceber o potencial do cenário independente foi libertador para ele. “Eu não preciso ser um funcionário de linha de produção Fordista de quadrinho americano, sabe?” E assim ele começou seus próprios projetos de webcomics nacionais, como Santuários e Nocturne. “Foi até a época que eu comecei a seguir essa galera, outros artistas independentes, no Twitter. Meu feed era basicamente só de quadrinistas. Eu criei uma bolha artística.”
Aos poucos, Fred começou a ganhar dinheiro com o seu trabalho, frequentando diferentes comic cons e vendendo quadrinhos pela internet. Mas não ter uma garantia de renda era algo muito estressante e, quando abriu uma vaga para a Copa Studio, ele enviou seu portfólio, mesmo sem experiência em animação, e tentou a sorte.
“Eu me inscrevi. Disse ‘Não tenho experiência em storyboard, mas eu super me interesso na área. Tenho experiência em quadrinho, saco de cena, composição e tudo mais…Com um treinamento condensado eu consigo me virar em storyboard.’ E me inscrevi também para [design de] personagem.” O que ele não esperava era ser chamado para trabalhar com cenário em Giga Blaster, um dos projetos do Copa, um cargo para o qual ele nem chegou a se inscrever.
“O impulso de fazer quadrinho — um trabalho para ser resolvido rápido e para pensar em perspectiva, câmera e tudo mais — acabou chamando a atenção de um pessoal que já trabalhava no Copa.” Assim, graças a seu extenso portfólio, ele se viu inserido em um mercado que apenas sonhava em fazer parte.
Como é o processo de construção de cenários em uma animação?
Uma vez dentro de um estúdio de animação, Fred percebeu que trabalhar com cenários para desenhos animados exigia um leque de habilidades um pouco diferentes do que costumava praticar em suas webcomics.
“A princípio, na webcomic eu tinha o poder da direção, de orientar a cena para onde eu quiser. Na animação, na maior parte das vezes, o cenarista vai ter um storyboard indicando ângulo, o que está no fundo e as características principais do cenário.”
Com menos controle de cena, ele se viu desafiado a pensar questões de perspectiva de um modo mais amplo. Um gerenciamento eficiente de camadas foi essencial para que cada ambiente facilitasse a fluidez das cenas. “A animação te obriga a pensar no trabalho do cara que vai pegar o cenário e vai ter que soltar todos os elementos pros personagens atravessarem a cena sem ter nenhuma obstrução.” Mesmo em animações tradicionais, que existem em um plano 2D, é preciso visualizar as três dimensões do cenário com clareza.
Depois de posicionar os elementos mais importantes do cenário, o cenarista precisa decidir que objetos vão compor aquela cena — livros, eletrodoméstico, e o que mais for necessário. Em geral, é um processo bastante criativo, mas o nível de liberdade para decidir tais elementos varia dependendo do projeto.
Alguns desenhos revisitam muitos cenários importantes que precisam manter uma consistência interna e não permitem muita flexibilidade. Nesses casos, acaba sendo uma questão de adequar locais preestabelecidos às necessidades da cena. Outros permitem que o artista procure as referências que preferir, o que torna a criação mais prazerosa.
“É um processo de conceituação para depois executar o cenário. É muito divertido de fazer! E você faz pensando ‘isso aqui é 100% meu!’. Tem outro peso, sabe? […] É mais difícil, mas é mais divertido.”
Ele avalia esses casos como mais extremos e a maioria dos desenhos vai exigir uma combinação das duas abordagens. O mais interessante é perceber que até mesmo as técnicas de ilustração mudam absurdamente entre projetos.
Hoje ele trabalha em projetos que dependem muito de vetores, uma técnica mais computadorizada, mas Irmão do Jorel exige habilidades completamente diferentes.
“Irmão do Jorel a gente faz tudo no brush de uma maneira quase artesanal. Cada hachura que você faz, você não tem uma ferramenta de replicar que você consiga fazer uma sequência de hachuras e tal, porque você precisa ser orgânica, precisa ter o peso certo, a direção certa…”
Para Fred, o mais legal em seu trabalho é resolver a composição, isto é, pensar em como posicionar os objetos de forma eficaz para guiar o olhar da audiência para onde mais importa. “É tipo resolver um quebra-cabeça. Quando você termina de fazer, é basicamente trabalho braçal: fazer linha, vetor… Aí você coloca música e trabalha sem se preocupar tanto.”
Como está o mercado nacional de animação?
Esse cuidado em entregar o melhor produto possível, não importa o esforço, é uma das grandes forças do mercado nacional de animação e também um atrativo para novas parcerias com estúdios estrangeiros.
Fred lembra que recentemente trabalhou com cenários para um desenho internacional que já estava em produção. “Eu tenho visto projetos grandes e até em um modelo de negócio da empresa de animação vender um serviço para empresa de fora que está querendo terceirizar produção.”
Foi algo que também aconteceu na Birdo Studio, que há poucos anos trabalhou diretamente com a Disney produzindo a série de curtas Star Wars: Forças do Destino. Para Franklin, que hoje atua como diretor de animação dentro do estúdio, um dos grandes diferenciais da animação nacional é o nosso ponto de vista único, moldado por nossas experiências tipicamente brasileiras.
“A gente tá tão acostumado com séries gringas, americanas, que toda série brasileira tem um ponto de vista muito único do criador. Por exemplo, Irmão do Jorel, que a gente vê claramente que é a infância de uma pessoa brasileira. Eu sinto que se você pegar todas as séries brasileiras e colocar uma do lado da outra, elas são muito diferentes entre si.”
Comparada com as gigantescas indústrias americanas e japonesas, a produção nacional de animação ainda dá os seus primeiros passos. Este é um lugar incrível para incentivar uma criatividade sem igual, que é muito bem recebida tanto pelo público mais jovem, quanto por aqueles que não puderam crescer com referências nacionais de animação.
“Eu sinto que a galera realmente coloca um empenho em ir atrás, pesquisar e apoiar a galera que faz série nacional. Até porque não é algo fácil de fazer e que não existia poucos anos atrás.”, acrescenta Franklin.
O ponto de virada para nossas animações foi uma lei que obrigava canais pagos a incluir produções nacionais em sua grade, o que gerou interesse em grandes empresas como Cartoon Network em investir na animação nacional. “Isso, além de editais de fomento que dão o orçamento para a série ser feita, fez um diferencial absurdo para que a gente tivesse um mini boom de séries brasileiras.”
Entretanto, ambos relatam que houve um retrocesso no incentivo à produção cultural do Brasil nos últimos três anos. ”Você tem projetos que estão pendurados, ainda dependendo de financiamento.”, lamenta Fred “A única coisa que a indústria pode fazer é olhar lá para fora.”
“Falta investimento. Cara, a gente consegue fazer coisas muito legais com um quinzeavos do que o pessoal lá de fora. Imagina se a gente tivesse o mesmo nível de investimento?” questiona Franklin. “Mas em matéria de profissional bom, da qualidade dos projetos [a gente não deve em nada]. A temporada 4 de Irmão do Jorel ficou um absurdo! ”, acrescenta Fred.
Mesmo com novos obstáculos, o mercado nacional continua prosperando com produções cada vez mais impressionantes. Há muita coisa boa no horizonte — tanto da Birdo Studio, que se prepara para exibir a estreia de Franklin na direção, quanto da Copa Studio, que atualmente libera novos episódios da quarta temporada de Irmão do Jorel toda quarta-feira, às 17h45, no Cartoon Network.
Precisamos valorizar cada vez mais nossa própria produção, comentando novos desenhos, compartilhando e mostrando que há sim um interesse de ver nossas histórias na tela da televisão e que há espaço para crianças brasileiras sonharem com um futuro no mundo da animação.
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