Silent Hill: Como a franquia de horror caiu em declínio – e como ela pode voltar
Silent Hill: Como a franquia de horror caiu em declínio – e como ela pode voltar
Série saiu da mão dos desenvolvedores originais e foi saturada por projetos medianos, mas ainda há esperança
No final dos anos 1990, gamers do mundo todo descobriram o potencial dos japoneses para criar jogos de terror verdadeiramente assustadores, que usam toda a capacidade 3D do PlayStation 1 para entregar boa exploração, criaturas medonhas, combate tenso e sustos marcantes. Claro, isso se trata de Resident Evil, o survival horror da Capcom que, pouco após seu lançamento em 1996, se tornou um verdadeiro fenômeno mundial. Rival do estúdio na época, a Konami viu ali uma oportunidade: a de ganhar muito dinheiro.
Normalmente, a lógica corporativa é simples, e envolve apenas investir pouco e lucrar muito. A Konami então preparou uma equipe minúscula, com cerca de dez desenvolvedores que não se encaixam bem nos demais projetos da empresa, e a batizou de Team Silent.
Encarregados de entregar a próxima franquia milionária dos games de terror, o grupo logo demonstrou que queria seguir em uma direção diferente de Resident Evil e deixar a ação dos filmes hollywoodianos de lado, preferindo focar na atmosfera opressiva de contos de horror e ficção científica.
Não é nem preciso dizer que os executivos da Konami se decepcionaram com a abordagem inusitada, perderam fé no projeto e deixaram os desenvolvedores brincarem com o conceito, sem supervisão. No escuro, sem muitos recursos ou mentoria, a equipe de fracassados e amadores preparou o que viria a ser um dos jogos mais influentes e memoráveis da história do horror.
Silent Hill é um marco do terror interativo. O game original, feito aos moldes de um conto perturbado de Stephen King, deu origem à uma franquia icônica por sua atmosfera pesada, narrativa repleta de mistérios intrigantes e, é claro, sua titular cidade fantasmagórica, infestada das mais infernais monstruosidades.
Ao longo dos últimos 20 anos, Silent Hill viveu, brilhou, teve uma série de produções questionáveis, morreu e até ameaçou ser revivida, apenas para ser executada em praça pública pela própria Konami, que agora novamente brinca com a possibilidade de uma retomada. O Team Silent, a equipe de fracassados que mostrou sua genialidade, já não existe mais há pelo menos 15 anos. Mas é o esforço desse pequeno time original, que construiu as quatro primeiras (e até hoje, melhores) obras da franquia, que mudou o rumo do horror nos games para sempre.
Neste Dia das Bruxas, o Detonado! Legião explora as ruas sujas, sombrias e cheias de neblina de Silent Hill, um dos maiores representantes do horror nos games.
Que os quatro primeiros jogos são alguns dos mais queridos e aterrorizantes do gênero, isso todo mundo sabe. Então, é hora de entender como a franquia gigante tropeçou em obras de qualidade duvidosa, sem o envolvimento do time original, movidas pela ganância ao ponto da saturação – e como ainda há esperança para uma retomada digna de sua grandeza.
O declínio de Silent Hill
Em 2004, Silent Hill 4: The Room já demonstrava que a franquia estava prestes a mudar, adotando funções diferentes de câmera, combate e até mesmo ambientação, já que foi o primeiro que não se passava necessariamente na cidade de Silent Hill. Um ano depois, essa mudança foi confirmada quando a Konami fechou as portas da Team Silent, mesmo que a equipe original tenha, de fato, construído a franquia milionária que a empresa queria no fim dos anos 1990. Dali para frente, Silent Hill deixaria a mão dos japoneses, e passaria a ser desenvolvida por equipes europeias ou norte-americanas.
É consenso entre os fãs que a decisão marca o declínio da franquia. Todos os jogos que vieram após The Room são, no mínimo, divisivos. Quem inaugurou essa nova era foram os ingleses da Climax Studios que, até então, eram conhecidos por tocar conversões e títulos licenciados de filmes e animações. Em 2007, eles entregaram Silent Hill: Origins, que expandiu a mitologia da saga ao contar uma história ambientada sete anos antes do game original.
O game, que acompanha um motorista de caminhão que se vê envolvido nos sombrios rituais da Ordem, teve recepção boa o suficiente, e é especialmente impressionante pelo nível de fidelidade gráfica e complexidade no PSP, chegando ao PlayStation 2 apenas um ano depois.
Por mais que Origins seja um dos poucos títulos pós-Team Silent que ainda é bem visto pelos fãs, sua maior contribuição é, sem dúvidas, ter lançado a carreira de Sam Barlow. O desenvolvedor inglês serviu como designer principal e roteirista do game, mas em 2014 deixou a Climax Studios para seguir carreira nos indies, com títulos de peso como Her Story e Telling Lies.
Já em 2008, a boa vontade do público começou a passar graças à Silent Hill: Homecoming. Dessa vez, quem assumiu o projeto foram os estadunidenses da Double Helix Games, estúdio inaugurado a partir da junção de duas produtoras diferentes, mas ambas com experiência apenas em jogos licenciados. A trama de Homecoming segue o militar Alex Shepard, que acaba na cidade de Silent Hill ao investigar o estranho desaparecimento de seu irmão, Joshua.
O game não caiu nas graças da crítica, que reclamou da tensão fraca e do combate meia-boca em excesso. Para muitos fãs, Homecoming é emblemático do descaso com Silent Hill ao reutilizar o Pyramid Head – vilão cuja origem é ligada à James Sunderland, do segundo jogo – apenas pelo fanservice. Não ajudou que, naquela época, havia opções muito melhores de jogos de terror, como Dead Space, Condemned e Siren, essa última ironicamente desenvolvida por antigos membros da Team Silent.
Ao longo dos anos 2000, muitas franquias testaram o modelo de lançamentos anuais, que rapidamente se provou desgastante tanto para os jogadores quanto para os desenvolvedores. Em 2009, esse desânimo já era real, mas a Climax Studios novamente demonstrou sua capacidade com SIlent Hill: Shattered Memories, uma espécie de reimaginação da jornada de Harry Mason no game original, porém com ainda mais foco na narrativa.
Dessa vez, a câmera alterna entre primeira e terceira pessoa, com uma mistura de exploração da cidade e sessão de terapia, onde as respostas do jogador moldam os momentos de tensão. Depois de Homecoming apanhar nas críticas, Shattered Memories teve recepção mais calorosa, mas já demonstrando a fadiga do público.
O prego no caixão só veio mesmo em 2012. Dessa vez, a Konami deu o controle para a Vatra Games, estúdio novato da República Tcheca, que entregou Silent Hill: Downpour. A trama acompanha um detento que, ao fugir da prisão, acaba na cidade de Silent Hill.
O resultado é o game pós-Team Silent com pior recepção crítica de toda a franquia, conhecido por seus diversos problemas técnicos e pela falta de personalidade. Muitos elogiaram as mecânicas de exploração e combate mas, naquele ponto, Silent Hill era apenas uma lembrança do que tornou os originais tão marcantes. A Vatra Games, por sua vez, foi à falência em setembro de 2012, quatro meses após o lançamento de Downpour.
A Konami, por sua vez, ainda não queria abrir mão. Ainda em 2012, meros dias após Downpour lançar, a empresa também disponibilizou remasterizações dos dois primeiros jogos, na infame Silent Hill HD Collection.
O único problema foi que, anos antes, a própria distribuidora se desfez do código-fonte dos títulos originais, o que criou um verdadeiro pesadelo para a Hijinx Studios, contratada para refazer os clássicos para o Xbox 360 e PlayStation 3. Isso resultou em remasterizações completamente quebradas, cheias de bugs estranhos, e ainda com uma péssima dublagem inédita. Com dois fracassos no mesmo mês, era hora de Silent Hill tirar o seu tão merecido descanso.
Esse hiato não durou muito – mas, felizmente, surgiu em um projeto de paixão. Em 2014, os usuários do PlayStation 4 receberam P.T., uma demonstração gratuita que simplesmente surgiu do nada, de surpresa.
A demo se parecia muito com outros jogos de terror da época, como Outlast e Amnesia, com muito foco em exploração em primeira pessoa, mas com visuais verdadeiramente impressionantes e uma excelente atmosfera. Após algumas semanas dos fãs teorizando e explorando o projeto em fóruns e livestreams, foi descoberto do que realmente se tratava: Silent Hills.
Acontece que P.T. era, na verdade, a sigla de Playable Teaser, ou um teaser jogável feito para dar um gostinho do que viria no futuro. O projeto real seria comandado por Hideo Kojima, a mente por trás de Metal Gear Solid, e por Guillermo Del Toro, diretor de O Labirinto do Fauno, Hellboy e Círculo de Fogo.
Não bastasse essa dupla de peso, o protagonista seria vivido por Norman Reedus, o Daryl de The Walking Dead, e a equipe ainda teria o retorno do compositor dos clássicos Akira Yamaoka na trilha sonora, e possivelmente design de monstros por Junji Ito, autor de perturbadores mangás como Uzumaki. Enfim, parecia que Silent Hill ganharia um novo projeto digno de sua grandeza.
A felicidade não durou muito. Hideo Kojima entrou em uma verdadeira intriga pública com a Konami, com quem trabalhava na conclusão da saga Metal Gear Solid, e acabou sendo demitido pela distribuidora. Seu estúdio, a Kojima Productions, foi fechado. Silent Hills então se tornou o alvo do desgosto da Konami.
O projeto foi cancelado sem nenhuma chance de salvação. Mais tarde, Guillermo Del Toro chegou a dizer que a distribuidora praticamente “salgou o solo” para garantir que nada dessa versão fosse realizado no futuro. Para agravar ainda mais a ofensa, P.T. – a tão elogiada demo – foi inteiramente removido dos servidores da PlayStation Network, se tornando uma verdadeira raridade para colecionadores, e também um monumento ao jogo que nunca existiu.
Entre todos esses jogos, a Konami tentou extrair o máximo de lucro possível da marca. Foram lançados vários games derivados para celular, e também duas adaptações cinematográficas. No fim das contas, foi a própria distribuidora que matou Silent Hill.
Quanto aos inúmeros fãs que ficaram órfãos da saga, a Konami parece apenas provocá-los, usando o nome da franquia para vender produtos licenciados. A última ofensa surgiu em 2015. Três meses após a execução pública de Silent Hills, a empresa anunciou a retomada da série… em forma de pachinko, uma máquina caça-níquel para cassinos japoneses. Para os fãs, não foi só como levar uma rasteira, mas ainda ser chutado e cuspido quando já se está no chão.
O legado de Silent Hill (e o que vem pela frente)
Silent Hill pode ter surgido como um esforço puramente comercial, que só deu certo pela capacidade não explorada de seus desenvolvedores, mas hoje é preciso ser reconhecida como uma das maiores séries do horror – tanto pelos acertos quanto pelos erros. Mesmo em seus exemplares mais fracos, a saga sempre demonstrou confiança na sua abordagem e muito estilo para seus contos macabros. Considerando que há 17 anos não há um Silent Hill que não seja divisivo, e nem mesmo isso afetou o amor dos fãs, é a prova do impacto duradouro da franquia.
Os fãs, aliás, se tornaram verdadeiros sofredores após o incidente com Silent Hills. O golpe dado pela Konami foi tão grande que, até hoje, o público rasteja de projeto em projeto, em busca de algo que entregue uma fração de tudo que foi prometido pela obra de Kojima e Del Toro.
Essa ansiedade fica ainda mais evidente quando algo como Abandoned, game de PlayStation 5 da Blue Box Studios, brinca com o mesmo tipo de anúncio surpresa que consagrou P.T. (e, em outro caso, Metal Gear Solid V: The Phantom Pain). Ou então quanto um game como Visage consegue alcançar aclamação e sucesso apenas por se inspirar na atmosfera da demonstração de um projeto que nunca saiu do papel.
O último motivo de celebração que os fãs tiveram foi através de uma expansão de Dead by Daylight, que adicionou Cheryl Mason, Pyramid Head, James Sunderland e até mesmo a escola de Midwich Elementary ao game multiplayer, com impressionante atenção aos detalhes, mas não ao ponto de substituir a felicidade trazida por um game inédito. O público fiel sempre manifesta a falta que a série faz em suas vidas.
Nesta altura do campeonato, é possível imaginar que a Konami ignora por pura birra, mas a empresa pode estar preparando uma retomada digna, mas sem muita publicidade para não enterrar o projeto tão cedo assim com comparações com Silent Hills. O exemplo mais recente disso veio na parceria com a Bloober Team.
O estúdio polonês conquistou seu espaço no horror com Layers of Fear e Observer, mas recentemente demonstrou o carinho por Silent Hill através de The Medium, game do Xbox Series S | X e PC (e, mais tarde, PlayStation 5) claramente inspirado pela estética e atmosfera da saga, além de também ter a trilha sonora por Akira Yamaoka. Esse esforço vingou, e os poloneses agora têm um acordo fechado com a distribuidora japonesa. Nenhum projeto foi revelado até o momento, mas é uma coincidência forte demais para ser ignorada.
O futuro de Silent Hill é um pouco incerto, isso é verdade. Mas, seja como for, uma coisa se mantém: o amor do público continua, e o legado que os primeiros jogos deixaram para o horror, para a indústria de games, e para gerações de fãs é tão grande que nem mesmo mais máquinas de pachinko conseguem apagar.
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