Falcão e o Soldado Invernal: Entenda como a série constrói o Capitão América Negro
Falcão e o Soldado Invernal: Entenda como a série constrói o Capitão América Negro
O produtor precisou desconstruir o Falcão para reconstruir o novo Capitão América.
Atenção: Alerta de Spoilers!
Há um novo Capitão América em Falcão e Soldado Invernal, mas ele ainda não é Sam Wilson. A nova série do Disney+ deu muito o que falar quando, logo no primeiro episódio, o fiel amigo de Steve Rogers decidiu rejeitar o cobiçado escudo do herói. Apesar de simples, esse gesto deu início a uma discussão sutil sobre a visão da negritude entre os heróis da Marvel.
- O voo raso do Falcão
- Uma jornada por consciência
- Entendendo racismo institucional
- Entendendo brutalidade e apagamento
- O peso do escudo
O voo raso do Falcão
Recapitulando a trajetória de Sam Wilson e Bucky Barnes, os dois principais amigos do antigo Capitão América, fica evidente a falta de interesse dos roteiristas da Marvel em se aprofundar em um herói negro. Enquanto o Bucky foi parte integral da trilogia do Capitão América, Sam Wilson não passou de um mero figurante.
Em cada filme, aprendemos sobre o passado, as motivações e as dores de Bucky, mesmo que ele seja um antagonista na maior parte do tempo. Sam, por outro lado, foi escrito para se encaixar facilmente no estereótipo de “melhor amigo negro” do protagonista. Isto é, ele não tem direito a motivações próprias ou um passado desenvolvido.
Para que Sam se torne um personagem com profundidade, digno de assumir o manto de Capitão América, o showrunner Malcolm Spellman precisou dar alguns passos para trás antes de avançar. Precisamos conhecer mais sobre quem é Sam Wilson como Falcão antes de vermos sua jornada como Capitão América.
Uma jornada por consciência
A primeira cena de Falcão e o Soldado Invernal resume o principal conflito na mente de Sam. Seu diálogo ao receber o escudo de Steve Rogers em Vingadores: Ultimato ecoa em sua mente, reforçando um duro questionamento. Mesmo sendo o herdeiro legítimo, aquele escudo não parece ser seu e isso tem implicações muito mais profundas do que pode parecer.
Em um mundo em que pessoas brancas dominam a maioria dos ambientes, é difícil que pessoas negras não cresçam com uma latente síndrome de impostor. Você não vê ninguém como você ao olhar ao redor e seu cérebro questiona se você realmente deveria estar ali. Essa é provavelmente a primeira reação de Sam ao carregar o escudo: um não merecimento irracional.
Por outro lado, há também a questão do verdadeiro significado do manto de Capitão América. Diferente de outros heróis que surgiram espontaneamente, o título de Capitão América foi criado como uma propaganda dos valores nacionais dos americanos. Ele representa liberdade para muitos, mas foi construído com um histórico de opressão.
O Capitão América é um herói militar, que lutou entre outros soldados na Segunda Guerra Mundial. Instituições militares estas que são jogadas contra a população negra quando é conveniente ao governo, como visto durante as manifestações anti-racistas de junho de 2020.
Faz sentido que Sam Wilson tenha um receio natural em aceitar aquele manto. Vendo a semente de dúvida causada pelo racismo estrutural, o curador de um museu aproveitou para manipular Sam ao seu favor, cedendo o escudo por uma boa causa. Sam só não imaginava que a boa causa era outro branco no poder.
Essa inocência é sintoma de uma completa falta de consciência racial. Malcolm Spellman percebeu que, como consequência do personagem ter sido escrito sem qualquer cuidado, o próprio Sam estava desconectado dos efeitos do racismo na sociedade. E isso é muito comum.
Há um certo mito de que pessoas negras (ou LGBT, ou qualquer outra minoria) são especialistas quando o assunto é inclusão e diversidade, mas isso não é necessariamente verdade. Quando não há um olhar crítico para as suas experiências, analisando o motivo do que lhe acontece, há uma dificuldade em reconhecer seu contexto social. No início da série, é assim que encontramos Sam e acompanhamos sua jornada de conscientização.
Entendendo racismo institucional
A nossa primeira parada é entender a relação de pessoas negras com instituições financeiras e quem explica é a irmã de Sam, Sarah Wilson.
Apesar do status heroico de seu irmão, Sarah luta para salvar a família de uma onda de problemas financeiros. Sam, que nunca precisou lidar com bancos, não entende a dificuldade de sua irmã em procurar um empréstimo. Para ele, a situação é simples, mas Sarah sabe que é tudo muito complicado.
Segundo um estudo publicado no jornal The Guardian em janeiro de 2020, pequenos negócios liderados por pessoas negras têm o dobro de chances de terem seus empréstimos negados, em comparação aos empresários brancos. E isso é algo facilmente ignorado quando não se sente na pele.
O problema de Sam Wilson é acreditar que seu status como Vingador muda de algum jeito como a sociedade lhe enxerga. Mas ele logo aprende que podem até enxergá-lo como um cara divertido, mas isso não muda sua relação com as instituições financeiras.
O Capitão América é um herói que deveria lutar para defender os civis. É isso que o governo afirma quando anunciam John Walker para o cargo. Encarando a sua identidade civil, Sam Wilson se prepara para entender a desigualdade racial de uma maneira mais pessoal, para só então defender as pessoas com mais consciência quando assumir o papel de Capitão América.
Entendendo brutalidade e apagamento
Outra instituição que nunca foi amiga da população negra é a polícia e Sam percebe isso no episódio “O Herói Americano” ao conhecer Isaiah Bradley, o primeiro Capitão América negro.
Como boa parte de influentes personalidades negras da história, Isaiah teve sua importância apagada para esconder barbáries de um sistema racista. Junto de um grupo de soldados negros, ele foi cobaia do governo em uma tentativa de estabilizar o soro de super-soldado. A questão é que ele foi o único a sobreviver.
Há uma crença por parte da população que novos procedimentos da indústria farmacêutica deveriam ser testados na população carcerária, mas isso comumente ignora o fato de que há uma quantidade considerável de pessoas inocentes encarceradas, a maioria negra.
Os experimentos com Bradley não são frutos de mera ficção, mas sim inspirados no caso de Tuskegee. Entre 1932 a 1972, o serviço de saúde pública americana aplicou um estudo em cerca de 300 homens negros com sífilis para analisar os avanços da doença. Eles nunca foram informados que estavam doentes e os cientistas só estavam estudando quanto tempo levaria para todos morrerem.
O peso do escudo
No caso de Bradley, depois de servir em missões para o governo como um super-soldado, ele foi preso por ser considerado muito perigoso. Foram 30 anos na cadeia indevidamente por ter sido cobaia de um estudo ao qual ele não aceitou. Conhecê-lo serve de alerta para Sam. Ele precisa estar sempre atento, porque aceitar o manto de Capitão América também o torna um alvo.
Um Capitão América Negro é uma grande questão, não só para o Universo Marvel, mas para o mundo do entretenimento e o showrunner, Malcolm Spellman, sabe o peso que essa série carrega. Exatamente por isso ele fez questão de planejar uma história que ressaltasse a verdadeira importância de reapropriar símbolos negros.
“Eu realmente acredito que esses ícones negros gigantes são necessários, não só para as nossas crianças pretas, mas também para as crianças brancas absorverem [essa ideia] — nosso povo é grandioso e heroico…” disse ao TV Line.
Para representar o povo negro, Sam Wilson passa por uma jornada de reconexão com a sua comunidade, enfrentando os mesmos dilemas que seus irmãos para entender a responsabilidade de não ser apenas mais um Capitão América, mas a esperança que traz um Capitão América Negro.
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