Crítica: Resident Evil – Bem-vindo a Raccoon City tenta justificar filme morno com apego ao fanservice
Crítica: Resident Evil – Bem-vindo a Raccoon City tenta justificar filme morno com apego ao fanservice
Reboot nos cinemas tem seus momentos, mas sofre pela trama estufada e pela tensão quase nula
O fã é quem manda em Hollywood. A indústria audiovisual entendeu o poder de apelar para memórias quentinhas da nostalgia, e passou a envolver os consumidores em todo o processo criativo, desde apontar o que vale a pena ser produzido, prestar consultoria e, claro, servir como controle de qualidade para o produtor final.
Nesse esforço para agradar os especialistas, o cinema percebeu que não deu o melhor dos tratamentos para os videogames – o que se tornou um problema quando, ao melhor estilo garota-feia-que-fica-bonita de comédias românticas, os games se tornaram maiores e mais lucrativos que os filmes. Hollywood correu atrás do prejuízo e colocou incontáveis adaptações de jogos em desenvolvimento. Como pedido de desculpas pelos “erros” do passado, Resident Evil encabeça essa lista.
Acontece que, no início dos anos 2000, a franquia de horror da Capcom conquistou as telonas com os filmes de Paul W.S. Anderson (Mortal Kombat, O Enigma do Horizonte), que foram verdadeiros sucessos de bilheteria, mas que não caíram nas graças dos fãs. Agora, uma nova adaptação quer justamente agradar essa fatia do público mais versado com Resident Evil: Bem-vindo a Raccoon City.
Ficha técnica
Título: Resident Evil: Bem-vindo a Raccoon CIty
Direção e roteiro: Johannes RobertsData de lançamento: 2 de dezembro de 2021 (Brasil)
Duração: 1h 47min
Sinopse: O filme se passa em Raccoon City, cidade do meio-oeste em que era sediada a farmacêutica Umbrella Corporation, no ano de 1998. O local se tornou um lixão e “um grande mal está fermentando sob a superfície”. Quando esse mal sobe, um grupo de sobreviventes vão tentar descobrir o mistério por trás de tudo.
Caos urbano
Bem-vindo a Raccoon City dá um reset na série nas telonas. Sai Alice (Milla Jovovich) e seu universo louco, repleto de clones e seres super-poderosos, e entra uma versão um pouco mais pé-no-chão, que remete ao início da franquia nos games. Bom, não exatamente o “início”, mas sim os remakes dos dois primeiros títulos, lançados em 2002 e 2019 respectivamente.
A trama segue os irmãos Claire (Kaya Scodelario) e Chris Redfield (Robbie Amell), órfãos que cresceram em uma instituição em Raccoon City. Já adultos, o irmão se torna um policial da equipe de elite STARS, enquanto a irmã retorna à cidade para investigar uma conspiração envolvendo experimentos duvidosos da Umbrella Corporation, gigante farmacêutica com enorme presença e poder no local. A vida dos dois é mergulhada em caos quando uma misteriosa infecção começa a transformar os habitantes em mortos-vivos.
Desde o início, todo o propósito dessa versão é ser mais autêntico ao jogo, mas o desafio de qualquer adaptação é entender as particularidades de cada mídia. Para isso, o filme modifica alguns elementos das tramas originais. Os incidentes da Mansão Spencer e do surto em Raccoon City, que originalmente são espaçados em alguns meses, agora ocorrem simultaneamente na mesma noite de setembro de 1998. Além disso, a personalidade e o passado dos personagens também foram alterados.
Nas telas, os personagens dos games – que não eram poços de carisma, convenhamos – ganham traços mais exagerados. Claire é conspiratória e desconfiada, enquanto Chris é o “bom policial”, cercado por uma equipe de canastrões piadistas, formada por Albert Wesker (Tom Hopper) e Jill Valentine (Hannah John-Kamen). Já Leon S. Kennedy (Avan Jogia), policial novato cujo primeiro dia de expediente é logo no apocalipse, é igualmente desajeitado e prestativo, com um bom coração para compensar a falta de experiência.
Ninguém é bem desenvolvido mas, exceto por uma estranha tentativa de romance entre Jill e Chris, isso não é algo que realmente importa. Considerando o material base, o elenco se sai bem em criar representações minimamente interessantes para carregar a trama adiante. Chris e Jill são um pouco apagados, mas o Leon de Avan Jogia é carismático o bastante, e o Wesker de Tom Hopper tem potencial para sequências, especialmente pensando nas versões mais absurdas do vilão. Já a Claire de Kaya Scodelario é o coração do filme, com a atriz britânica entregando a atuação mais sólida entre os colegas, alternando entre a desconfiança, o pavor e a seriedade quando a situação pede por um pouco de ação.
As mudanças na lore de Resident Evil, como atrelar a infância dos Redfield com William Birkin (Neal McDonough) e a Umbrella Corporation, soam inofensivas, e ajudam a criar uma versão mais simplificada de um cânone repleto de revisões e contradições acumuladas ao longo de 25 anos. Como adaptação de games, o filme entende algo que muitos se esquecem: é preciso adaptar. Não há muito para os fãs encrencarem, mas há material de sobra para celebrar. O longa tem um enorme apreço por homenagear o material-base.
Isso fica visível na estética, que emula com perfeição o remake de Resident Evil 2 (2019), da cena de abertura à entrada da Delegacia de Polícia de Raccoon City tomada pelos mortos, e até mesmo no estacionamento e nos corredores subterrâneos do local. A produção se esforça ao máximo para garantir a fidelidade visual, e acerta em maior parte. Os únicos deslizes são nos cenários do game original, com uma Mansão Spencer macabra, mas não tão grandiosa e imponente quanto a do remake de 2002.
Nessas horas, Bem-vindo a Raccoon City te lembra que foi feito com um orçamento minúsculo, mas isso é contornado em boa parte por soluções elegantes. Sim, toda a estética do filme é de produto barato, mas isso é altamente consistente com o espírito dos jogos clássicos, que já tinha um gostinho de filme trash oitentista em suas cutscenes ou na infame cena de abertura. Parte de Resident Evil é ter esse charme deliciosamente brega, e o longa entende isso – seja por decisões conscientes ou por acidentes felizes.
Quando se trata de agradar ao fã, a obra se destaca. É tudo que o reboot se propõe a fazer, e consegue entregar algo que é visualmente idêntico, cheio de easter eggs, com o mesmo tom de breguice semi-intencional, e uma atmosfera mais pesada, sem tanto foco na ação. O problema é que a tentativa de se provar digno da franquia vai tão longe, mas tão longe que o filme simplesmente se esquece de ser um bom filme.
A horda fanática
Bem-vindo a Raccoon CIty vai com fome ao pote do fanservice, e morde muito mais do que consegue mastigar. A decisão de adaptar dois jogos de uma vez só é questionável no papel, e rapidamente se mostra o maior problema do longa. Tudo é corrido, e apenas uma pequena porcentagem dos cenários marcantes dão as caras na telona. É um pouco decepcionante ver a entrada da Mansão Spencer, mas não poder se perder por seus corredores apertados. O mesmo vale para a Delegacia de Raccoon City, que teve toda sua complexidade resumida em apenas dois ambientes.
Mas o que mais evidencia o quão questionável é a ideia da adaptação dupla são os personagens. Com dois núcleos bem populosos, defeitos como a falta de profundidade e as personalidades exageradas se tornam mais evidentes. A trama caminha a passos largos, e nada ganha o devido desenvolvimento, mas isso não impede o filme de continuar apresentando novas situações e personagens. É uma experiência que te deixa estufado e um pouco desnorteado. Quando esse ritmo ruim se encontra com os trechos em que os efeitos visuais são mais questionáveis, Resident Evil passa a deixar um gosto meio amargo na boca.
Honestamente, o filme ainda poderia triunfar caso abraçasse as próṕrias limitações, estabelecesse o trash como objetivo, e surpreendesse com um bom horror de baixo orçamento. Não é o caso, e o problema é a direção de Johannes Roberts. O cineasta inglês repete aqui todos os defeitos de seus trabalhos anteriores, como Medo Profundo e Os Estranhos: Caçada Noturna, que é se apegar na estética e decepcionar na (falta de) técnica.
Há alguns momentos que se destacam. Durante a missão na Mansão Spencer, Chris Redfield se vê confrontado por uma horda em um salão escuro, e a cena conquista pela claustrofobia de vê-lo atacado por todos os lados, iluminado apenas pelos breves clarões dos tiros de sua arma. Na maioria das vezes, porém, o cineasta anula a tensão das próprias cenas, cortando antes da hora ou entregando sustos sem nenhuma construção prévia.
Dificilmente o novo Resident Evil vai te deixar apreensivo. É visível que Roberts até flerta com um horror mais pé-no-chão e old school, replicando técnicas do cinema setentista, mas isso aqui se manifesta apenas em inúmeras cenas de zoom lento no rosto de personagens, para dar um ar artificial de mistério.
Trabalhar com gêneros pode ser uma muleta, que permite usar e abusar de uma infinidade de tropos e clichês estéticos sem nenhuma qualidade técnica. A carreira de Johannes Roberts é marcada por obras que se enquadram nessa definição. Ainda que o cineasta entregue um ou outro momento memorável – a cena de Chris na mansão, ou então a cena da piscina de Os Estranhos: Caçada Noturna -, sua direção fraca e pouco inspirada é o que anula toda a tensão do filme.
Resident Evil: Bem-vindo a Raccoon City com certeza vai entregar alguns bons momentos para os fãs – mas talvez só para eles. Sem o quentinho da nostalgia e das referências, é um filme morno que simultaneamente peca pelo excesso e por ser básico demais. Adaptar duas obras de uma vez resultou em uma mistureba de personagens com motivações nebulosas e ritmo agitado, mas sem nenhum pingo de humanidade além de um suposto amor pela franquia que inspirou.
A era do fã ainda está longe de acabar, e o longa ainda é finalizado com um gancho gigantesco para sequências, com mais personagens queridos pelo público saudosista. Há grandes chances de que, tal qual Mortal Kombat (2021), o filme tenha sucesso o bastante para garantir tais continuações, e nisso é possível traçar um padrão. De nada mais importa a qualidade, o desenvolvimento de personagens ou mesmo a tensão e os sustos de uma obra de horror. Desde que haja uma avalanche de easter eggs para os fanáticos, e que o estúdio não gaste muito com a produção ou mesmo diretores qualificados, todos saem felizes na monetização de velhas memórias. O fanservice vazio nunca esteve tão em alta.
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