Crítica: Missa da Meia-Noite, da Netflix, mistura horror e fé em narrativa melancólica
Crítica: Missa da Meia-Noite, da Netflix, mistura horror e fé em narrativa melancólica
O criador de A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly está de volta à Netflix!
Um dos diretores em maior ascensão no cosmos do horror, Mike Flanagan já havia nos surpreendido quando nos apresentou dramas humanos e tocantes envolvidos em uma embalagem fantasmagórica e espectral em A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly, as duas “temporadas” de sua antologia que adapta e reinterpreta livros clássicos de assombrações e casas mal-assombradas.
O cineasta, que já lançou nos cinemas obras emblemáticas como O Espelho e Doutor Sono, agora retorna à Netflix com Missa da Meia-Noite, seu projeto mais pessoal e intimista. Na série, um jovem com um passado sombrio e trágico retorna para casa após anos preso, ao mesmo tempo em que um novo padre chega à cidade, profundamente alterando a vida de toda uma comunidade local.
Abaixo, confira a crítica da minissérie:
https://www.youtube.com/watch?v=cspyDWJfly8
Ficha Técnica
Título: Missa da Meia-Noite (Midnight Mass)
Criador: Mike Flanagan
Roteiro: Mike Flanagan, James Flanagan, Dani Parker, Jeff Howard e Elan Gale
Direção: Mike Flanagan
Ano: 2021 (Netflix)
Número de episódios: 7
Sinopse: A história se passa em uma ilha isolada povoada por uma pequena comunidade que já enfrenta algumas cisões internas e se vê ainda mais dividida com a volta de um jovem desafortunado e a chegada de um padre carismático.
Missa da Meia-Noite mistura horror e fé em narrativa melancólica
“Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não acrediteis; porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos”. Essa passagem bíblica é encontrada no Livro de Mateus, Capítulo 24 e Versículos 23 e 24. De muitas formas, é um alerta contra aqueles que deturpam a palavra de Deus e posam como profetas do Senhor, ainda que só tragam mentiras e destruição.
Missa da Meia-Noite, a nova minissérie de horror do Mike Flanagan, é basicamente sobre isso – sobre como uma comunidade fervorosamente cristã pode sucumbir aos efeitos e às mentiras de um falso profeta por conta de “milagres” e “atos sagrados”, ainda que eles sejam cometidos da forma mais brutal e violenta. Mais do que isso, é uma grande exploração de como o luto, a culpa, a intolerância e o fanatismo podem nos afastar de nossa fé, ainda mais quando entra em jogo a institucionalização das religiões.
Após ter feito todo mundo morrer de chorar com A Maldição da Mansão Bly, série que usa fantasmas para tratar de amores perdidos, Flanagan retorna em uma narrativa íntima e pessoal. Aqui, ele conta a história de Riley Flynn, um homem que passou anos em cárcere e finalmente retorna para seu lar, a ilha de Crockett, localizada próximo ao litoral de Washington, nos EUA. Enquanto isso, acompanhamos como a chegada de um novo padre, Paul Hill, altera toda a cadeia hierárquica da ilha, transformando sua comunidade em um exército.
Parte horror sobrenatural com doses de melancolia, parte reinterpretação do Apocalipse, o Livro das Revelações, Missa da Meia-Noite vem para mostrar como Flanagan é um dos melhores representantes do horror no cenário atual – tanto por ser um diretor que não tem medo de entrar no gênero (pode deixar o “pós-horror” do lado de fora da igreja, obrigado) como por se aprofundar em como o horror tem uma forte responsabilidade de lidar com medos e traumas humanos por excelência.
“O que acontece no pós-vida?”
Um dos grandes desafios da minissérie é apresentar um grupo bem cativante de personagens e explorá-los não como indivíduos, mas como engrenagens em uma grande máquina representada pela comunidade de Crockett. Para isso, o cineasta usa de vários artifícios para compor essas figuras e suas dinâmicas interpessoais. Em uma era definida pelo TikTok, onde tudo tem que ser “rápido para fisgar a audiência”, esse trabalho pode afastar quem não tem disposição de acompanhar sete episódios de uma hora – mas por mais que a narrativa seja lenta, ela passa longe de ser arrastada ou escassa de eventos.
Os personagens são trabalhados com muita parcimônia e demoram para evoluir, mas esse processo lento reforça a transição do pacato para o macabro. Destaca-se também os vários monólogos ao longo da trama – nas mãos de qualquer diretor, eles seriam apenas intransigentes e exaustivos, mas aqui há um tom tão complexo e profundo nas discussões levantadas que é impossível não ver isso como uma construção magistral – destaca-se o momento no quarto episódio onde Riley (Zach Gilford) e Erin (Kate Siegel) conversam sobre o que pode acontecer no pós-vida.
E para fazer isso funcionar, necessita-se de um esforço coletivo envolvendo o diretor, os departamentos de produção e, principalmente, os atores. Felizmente, Flanagan escolhe a dedo um elenco poderoso. Zach Gilford brilha no papel de um protagonista marcado pela tragédia, mas todos funcionam bem. Os principais destaques vão para Hamish Linklater, Kate Siegel, Rahul Kohli e Samantha Sloyan.
Hamish (Legion) faz o papel do “bom padre”, mas carrega isso com uma complexidade sem tamanhos. Talvez seja o papel mais marcante da carreira do ator, que consegue dar a ele um toque dúbio e cheio de camadas. Siegel (Hush: A Morte Ouve) mostra que não está ali apenas por ser esposa do criador – a atriz já havia se provado anteriormente em Residência Hill, mas aqui dá uma interpretação digna de prêmios (isso se as premiações televisivas não fossem tão caretas a ponto de ignorar completamente o terror como um exercício válido da arte).
Kohli (iZombie) interpreta Omar Hassan, o xerife da cidade – que, apesar de sua autoridade, se vê encolhido por ser um homem muçulmano em uma ilha predominantemente católica, rendendo um debate interessante de como o “amor ao próximo” virou “ódio ao outro”, deturpando o significado da palavra de Deus. E por falar nisso, Samantha Sloyan é quem brilha no papel de Bev Keane, uma mulher fervorosa que age como zelote fanática, disfarçando sua sede de poder e de autoridade como um “amor divino”. Não é muito diferente do que já vemos no nosso cotidiano.
A falência de uma comunidade
Ao longo de seus sete episódios, Missa da Meia-Noite se mostra bem preocupada em retratar a falência de uma comunidade e como o fanatismo não apenas é prejudicial para quem está “do lado de fora” de uma religião, mas também para os próprios indivíduos que seguem essa prática – afinal de contas, todos começam a se engolir quando o amor é esquecido e dá lugar a um capricho humano.
Nesse sentido, é muito interessante observar como os sete episódios apresentam um arco próprio não só para os personagens, mas para a própria Ilha Crockett em si. Quando começa, a comunidade passa por vários problemas e há uma nítida escassez de alimentos, de recursos e inclusive, de fé. Após a chegada do padre milagreiro, a Ilha passa por uma transformação, voltando à glória dos dias prósperos – apenas para que vejamos toda essa estrutura entrando em colapso quando a mesquinharia humana dá as caras.
Isso até se comunica com o “fator divino” da série pois mostra como as pessoas estão cansadas de acreditar em algo que elas não veem. Quando um “milagre” é realizado por mãos humanas, o clamor deixa de ser nos céus e passa a ser na carne, no humano e no mundano – ainda que as pessoas se enganem a ponto de dizer que é um “sinal de Deus“. E Flanagan está muito consciente disso ao retratar como o Padre Paul deixa de ser um “emissário da palavra” para se tornar uma divindade em si, um ídolo.
E poderia ser algo simples, se não fosse o fato de que o próprio padre se deixa cair nas mãos de outro “falso profeta”. Sem dar muitos spoilers da trama, Missa da Meia-Noite acaba funcionando como um cruzamento entre Paraíso Perdido, do John Milton com Salém, do Stephen King. E isso só funciona bem porque nós, como fãs do horror, entendemos as codificações que ele quer trazer, especialmente após o terceiro episódio, que introduz novas camadas sobrenaturais à narrativa.
Ah, o horror…
E por sinal, o horror sabe exatamente onde causar impacto. Apesar dos contornos sobrenaturais e de todos os medos que isso pode causar, Missa da Meia-Noite se aproveita de um medo muito mais intrínseco: o humano. Flanagan não poupa de mostrar como essas pessoas, que são calmas e educadas, se transformam em verdadeiros monstros uma vez que se sentem autorizados a isso – e pior, enquanto acreditam fielmente que seus atos hediondos servem como passagem garantida para o Paraíso.
Mas apesar desse ponto, o que mais sobressai é como a série sabe dar contrastes entre essas figuras. O jogo de luz e sombras funciona bem não apenas na fotografia, mas também nas dimensões psicológicas e espirituais dessas pessoas – que em um momento, são devotos fanáticos e intolerantes e no outro, se solidarizam com seus entes queridos e até mesmo com desconhecidos.
Essa é a forma de Flanagan falar que o ser humano não é mau por natureza, mas ele é falho e facilmente corrompido. Isso atinge um ápice surpreendente no sexto episódio, o melhor da série – e onde mais se concentra o horror que tantos esperam. O resultado é uma autocrítica difícil, dolorosa e agridoce, que nos faz pensar sobre nossos próprios conjuntos de crenças, nossa humanidade e mortalidade e, principalmente, o que fazemos para tornar o mundo um lugar melhor.
Com tudo isso a ser dito, Missa da Meia-Noite se junta aos grandes trabalhos de Flanagan, como Residência Hill e Mansão Bly. O criador se superou mais uma vez, mostrando que para ele o horror nunca é apenas uma ferramenta para criar tensão ou dar sustos, mas sim uma forma de analisarmos o abismo na nossa alma e entendermos como podemos superá-lo diariamente. Tanto terapêutica quanto apavorante, sua nova minissérie transforma a Ilha Crockett em uma parada obrigatória não apenas para qualquer fã do gênero, mas também para qualquer um disposto a entender o divino e como isso é transformado em profano por uma sociedade hipócrita.
Missa da Meia-Noite está disponível na Netflix.
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