Crítica: King’s Man – A Origem renega comédia sem encontrar maturidade para entregar um bom drama
Crítica: King’s Man – A Origem renega comédia sem encontrar maturidade para entregar um bom drama
Abandonando lado pastelão, filme falha em se comprometer com seu novo público
Kingsman: Serviço Secreto fez uma estrondosa primeira impressão ao combinar cenas de ação extravagantes com uma comédia absolutamente irreverente. Após falhar em repetir a fórmula de sucesso na sequência, a franquia tenta um recomeço sem Taron Egerton ou Colin Firth, apostando no drama histórico de King’s Man – A Origem. Será que esta reinvenção deu certo?
Ficha técnica
Título: King’s Man — A Origem (The King’s Man)
Direção: Matthew Vaughn
Roteiro: Matthew Vaughn e Karl Gajdusek
Data de lançamento: 6 de janeiro de 2022
País de origem: Reino Unido
Duração: 2h 11min
Sinopse: O Duque de Oxfrod precisa convencer os Estados Unidos a se juntar à Primeira Guerra Mundial para proteger o Reino Unido do exército alemão, influenciado por uma conspiração secreta.
O perigo de levantar bandeiras que você não pretende defender
Nenhum filme me fez rolar os olhos tão forte em 2021 quanto King’s Man – A Origem, para logo em seguida me impressionar em quase todos os quesitos. Há uma certa elegância no jeito que o roteiro conduz a história, alternando sempre o seu ritmo para nunca deixar o espectador se acomodar. Pena que, quando o assunto é desenvolver a própria mensagem do filme, o próprio enredo acaba se acomodando.
A trama acompanha a relação do Duque de Oxford com seu filho Conrad, enquanto ambos processam a dolorosa morte de Emilly à sua própria maneira. Conrad quer provar o seu valor lutando pela Inglaterra na Primeira Guerra Mundial, enquanto seu pai quer protegê-lo a todo custo dos horrores do mundo. Mas para ter alguma chance acabar com uma conspiração sinistra que envolve os piores tiranos da história, eles vão precisar deixar o passado de lado.
A princípio, parece uma história inocente que poderia dar pano para um elaborado drama de família, que o filme até desenvolve de certo modo. Assim como o roteiro também consegue desenvolver, quando é necessário, uma envolvente trama de espionagem e um competente filme de guerra. Entretanto, por mais que os elementos brilhem por si só, eles são utilizados como argumentos incoerentes sobre o tema principal da obra que os próprios roteiristas falharam em entender: a questão do privilégio.
Logo nas primeiras cenas, o longa faz questão de estabelecer com todas as letras que pretende oferecer um ensaio sobre o uso responsável dos privilégios. De fato, esta é uma proposta ousada, interessante e necessária, especialmente por se tratar de uma história que acontece em meio a uma sociedade mais machista e racista que a moderna. Porém, a falha dos roteiristas em compreender os próprios privilégios resultou em uma narrativa medíocre, sem qualquer coesão.
Parte do problema já fica claro desde a fala de Emily para o pequeno Conrad momentos antes de morrer, bem no início do filme: “Pessoas com privilégio devem liderar por exemplo”. Escrita para construir a bússola moral do co-protagonista junto ao público, a linha de diálogo apresenta uma visão acomodada de privilégio que não propõe nenhuma mudança efetiva nas estruturas sociais. É como se o filme dissesse “precisamos falar sobre privilégio, mas não mexa nos meus”.
O lado mais sadio desta discussão é representado pela figura do principal protagonista, o próprio Duque de Oxford, interpretado brilhantemente por Ralph Fiennes. Ao longo do filme, ele está constantemente debatendo o seu lugar na sociedade e questionando o modo brutal de seus antepassados (em um raro momento de autocrítica britânica). Mas seus diálogos, mesmo que bonitos de se ouvir, nunca se refletem plenamente em suas ações. É sempre um meio termo com este filme.
Este paradoxo acaba minando todas as tentativas do roteiro de entregar verdadeira profundidade, que é a principal proposta deste longa. King’s Man – A Origem quer mais do que tudo no mundo ser um filme ousado, mas por se recusar a explorar suas ideias até as últimas consequências, acaba se tornando tão raso quanto as comédias anteriores da franquia, das quais o filme tenta desesperadamente se distanciar.
O mais frustrante é que o filme entrega uns surtos de coragem em algumas decisões na história, resgatando um fio de esperança de que tudo vai se resolver de um jeito satisfatório no final. Isso é especialmente verdade na sequência em que o filme mergulha de cabeça no gênero de guerra, entregando cenas profundamente imersivas. Mas rapidamente decisões questionáveis te lembram que esta não é uma obra que vai alcançar seu verdadeiro potencial.
Antes do filme te impressionar, ele vai fazer questão de revirar seus olhos com alguma escolha infeliz. Nem mesmo as cenas de ação se salvam desta terrível maldição. A maioria não é muito inspirada, apesar de serem bem competentes. Em geral, temos lutas de espadas de tirar o fôlego que não trazem nada de muito inovador. E quando finalmente temos algo mais extravagante, com o grande momento de Rasputin, acaba tendo um gosto amargo.
Todos conhecemos a fama do místico russo, ou pelo menos a canção do Just Dance 2, e a entrega de Rhys Ifans não deixa nada a desejar. Ele comanda a cena com sua presença, deixando uma grata imprevisibilidade no ar que se traduz também no seu modo de lutar, com piruetas e golpes precisos. Pena que sua figura seja impregnada pelo velho estereótipo hollywoodiano que tenta imputar a homens que gostam de homens uma vilania compulsória.
É sintomático de uma sociedade hipócrita que, um filme criado para criticar privilégios, lance mão de todos os estereótipos possíveis para tentar manchar a imagem de todos aqueles que não os detém. No fim, fica bem evidente que os roteiristas não sabem escrever personagens que não sejam como eles: homens cisgênero, brancos e heterossexuais.
Não bastasse a representação de Rasputin associada a ideias homofóbicas, o papel de Shola na história é reduzido ao estereótipo racista de “negro mágico”, que apenas guia o mocinho branco sem motivações próprias; enquanto o papel da Polly cai no misógino lugar-comum da mulher que ajuda seu amado a cumprir seus objetivos, sem nenhuma agência do seu próprio destino. Acaba que os principais coadjuvantes do filme se tornam caricaturas unidimensionais sem profundidade.
Esta insistente falta de autocritica desarma todo o potencial catártico dos grandes vilões da trama. Afinal, as grandes mentes por trás da conspiração que movimenta a trama são os monstros criados pela manutenção de antigos privilégios. Caso o protagonista apresentasse algum pingo de coerência, esta seria uma ótima oportunidade para discutir o que pode ser feito para reparar os erros históricos, como as brutais incursões britânicas citadas no próprio longa. Mas isso é infelizmente deixado de lado em prol de preparar o terreno para possíveis sequências.
No fim, King’s Man — A Origem sabe exatamente o que precisa ser dito, mas nunca encontra em si coragem o suficiente para dizer. É como se a mensagem deste filme se perdesse no meio do caminho e apenas um som abafado escapasse. Fraco demais para causar um impacto, deixa aquela sensação decepcionante que algo incrível poderia ter surgido, mas acabou se perdendo ao insistir em se manter cego aos próprios privilégios. Quando os créditos rolam, fica a sensação de um longa contentado em ser apenas mais um filme de ação.
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