Crítica: A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas provoca, diverte, emociona e une gerações
Crítica: A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas provoca, diverte, emociona e une gerações
Estúdio de Homem-Aranha: No Aranhaverso se firma como gigante da animação
Os melhores filmes de animação têm a difícil tarefa de conversar com dois públicos bem distintos: uma galera mais jovem, que procura algo divertido, e os mais velhos, que anseiam por profundidade. Com o surgimento das redes sociais, o abismo entre essas gerações só piorou. Parece que esses grupos falam línguas completamente diferentes, o que é explorado de forma brilhante em A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas.
Ficha técnica:
Título: A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs The Machine)
Direção: Michael Rianda e Jeff Rowe
Roteiro: Mike Rianda e Jeff Rowe, com participação de Alex Hirsch
Ano: 2021
Data de lançamento: 30 de abril (Netflix Brasil)
Duração: 110 minutos
Sinopse: Uma família nada normal precisa aceitar suas diferenças enquanto cruza o país para impedir um apocalipse tecnológico.
Tretas no grupo da família
Produzido pelo mesmo estúdio de Homem-Aranha: No Aranhaverso, o mais recente longa animado da Netflix acompanha os conflitos de uma família pouco funcional, os Mitchell. Cada membro tem sua particularidade e eles estão longe de ser uma família perfeita de comercial de margarina.
A relação entre esses personagens é a grande força motriz dessa trama e suas peculiaridades são responsáveis pelos momentos mais hilários. A mãe é mais otimista do que parece ser saudável; o caçula não sabe socializar; o pai, Rick, é muito apegado ao passado; enquanto Katie, a filha mais velha, exige ser aceita do jeito que é.
Na sua estranheza, os Mitchells representam muitas famílias do mundo contemporâneo, especialmente Rick e Katie, que não conseguem se entender de jeito algum. As farpas entre a dupla são um resultado natural do tal abismo geracional: além de se expressarem de jeitos diferentes, ambos têm uma visão de mundo marcada pela sociedade em que cresceram.
Crescer em um período pós-guerra fez o pai valorizar estabilidade financeira acima de tudo e se tornar avesso à tomada de riscos — comportamentos característicos dos “boomers”. Bombardeada pela constante evolução da Internet, a filha sente uma necessidade de sempre se reinventar e apostar no desconhecido para ser feliz. A proposta do filme é precisamente criar uma ponte para que essas pessoas possam enfim voltar a dialogar.
Influenciado socialmente
Esse conflito constante transborda para além da construção dos personagens e acaba reforçado em cada componente do filme, do roteiro ao visual.
Como a própria família Mitchell, a direção de arte parece uma colcha de retalhos de técnicas diferentes que não deveriam funcionar bem juntas, mas se complementam com harmonia surpreendente. O lado tridimensional garante a fluidez das cenas permitindo jogadas de câmera mais profissionais, enquanto pinturas a mão resgatam um olhar mais sensível e estilizado.
É diferente de qualquer coisa sendo feita atualmente no mercado, mas nem é o lado mais genial do título.
O filme está repleto de pequenos efeitos bidimensionais. Parece que Katie desenhou à mão reações na tela em tempo real. A técnica, usada em Aranhaverso para simular o universo dos quadrinhos, adicionou uma nova camada de significado no longa ao realçar a mais sutil das emoções do modo exagerado que veríamos em redes sociais. É quase como ver um story no Instagram, recheado de efeitos ou gifs animados, bem a cara da geração Z.
Para comunicar claramente ao público como Katie enxerga o mundo, o filme foi construído para conversar com a linguagem dinâmica dessa nova geração. A comédia incorpora elementos visuais da internet que hoje fazem parte do nosso dia a dia, como memes, pugs e outras besteiras. Por vezes ácido, bobo e sagaz, o humor parece oriundo de publicações do Twitter, consequência da consultoria do criador de Gravity Falls. Até o ritmo das piadas é mais acelerado, lembrando a experiência efêmera do TikTok.
Quando grandes empresas tentam replicar a linguagem da internet em suas obras, o resultado costuma ser incômodo e ultrapassado. Mas os roteiristas de A Família Mitchell parecem conhecer a essência deste meio o suficiente para incorporá-lo como um autêntico usuário. Assim, o humor acaba conquistando um ar orgânico, trazendo explosões curtas de comédia que despertam uma vontade de repetir as cenas mais engraçadas várias vezes, como faríamos com um meme.
Larga desse celular
Para conectar com o público veterano, os produtores adotaram uma tática mais sutil incorporando referências a clássicos do gênero apocalíptico na estrutura do filme. Quem conhece Madrugada dos Mortos, vai conseguir traçar paralelos com as cenas no shopping. Inclusive, os diretores brincam com essas expectativas para surpreender ainda mais. Pequenos acenos a bandas, bonecos e séries do século passado são o toque final para estabelecer um sentimento de pertencimento.
Mas talvez o maior reconhecimento do olhar cético dessa geração surja ao abordar o grande vilão da história: a invasão do mundo digital, que chega para isolar as pessoas e acabar com as relações sociais. No filme, isso surge de maneira bem literal com uma revolução de robôs inteligente dominando o mundo. Mas além de alfinetar as políticas nocivas de grandes conglomerados de tecnologia, podemos encarar essa abordagem como uma analogia esperta para a robotização da nossa humanidade.
A maior graça dos seres humanos é que somos cheios de defeitos, mas nem todos aceitam muito bem isso. Muitos caem na armadilha de procurar sempre alcançar uma ilusória perfeição, livrando-se de tudo que não cabe na sua caixa de expectativas. Mas é exatamente o que fica de fora dessa caixa que chamamos de criatividade e A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas procura valorizar essas diferenças.
Acima de tudo, este é um filme sobre identidade, sobre os perigos de se definir como tudo aquilo que o outro não é. Somos muito mais do que meros rótulos e, com um pequeno esforço de comunicação, sempre é possível achar um ponto em comum. A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é sobre acolher e entender as diferenças, uma mensagem ainda mais importante em um mundo cada vez mais polarizado.
Nota
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas mostra um novo caminho para o futuro dos longas animados, distante da perfeição ilusória almejada por produções da Pixar e mais próximo do público, ressaltando as diferenças com uma excelência visual bastante sensível. O longa vai te fazer abrir um sorriso do início ao fim, seja graças a suas piadas certeiras ou às relações familiar autênticas e honestas. Todo mundo pode se enxergar um pouquinho na Família Mitchell. Esse é “um filme feito por um bando de humanos esquisitos” para um bando de humanos esquisitos.
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