Crítica: Casa Gucci matou o camp com “bom gosto”
Crítica: Casa Gucci matou o camp com “bom gosto”
Ridley Scott quer ser levado a sério em novela de gente rica!
A temporada de premiações está chegando, e ao longo dos próximos meses teremos diversas cinebiografias e filmes de “prestígio” que estão tentando, a todo custo, a tão sonhada indicação na premiação. E para iniciar o aquecimento da forma mais memorável (ou não) o possível, temos Casa Gucci, o mais novo filme de Ridley Scott estrelado por Lady Gaga e Adam Driver.
Aqui, viajamos até a Itália nos anos 70 para conhecer Patrizia Reggiani, a mulher que se apaixona e manda matar o ricaço Maurizio Gucci – herdeiro de uma das marcas mais famosas e respeitadas da moda mundial. Com grandes expectativas, o filme poderia ser muito maior do que é – mas acaba sendo limitado pela necessidade de entrar para o clubinho do “bom gosto”. Aqui, você pode conferir a nossa crítica do longa!
Ficha Técnica
Título: Casa Gucci (House of Gucci)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Becky Johnston e Roberto Bentivegna
Data de lançamento: 23 de novembro de 2021
País de origem: Estados Unidos
Duração: 1h 37min
Sinopse: Quando Patrizia Reggiani, uma mulher humilde, casa-se com um membro da família Gucci, a sua ambição desenfreada começa a mexer com o lendário legado e desencadeia uma espiral de traição, decadência, vingança e, no fim, homicídio.
Casa Gucci: A Menina Mulher que Matou os Pais o Marido
Quando Susan Sontag publicou, em 1964, seu manifesto ensaístico Notes on “Camp”, uma das maiores motivações da filósofa e ativista era se posicionar contra a tal “ditadura do bom gosto“. Conforme definido por Sontag, camp é uma sensibilidade muito difícil de se descrever, mas que vem para mostrar a beleza do exagero, do indecente e do imoral, seja através de narrativas ou estéticas.
O que ela não poderia imaginar, no entanto, é que em pleno 2021, um caso tão profundamente camp quanto a morte de Maurizio Gucci ordenada por sua esposa, Patrizia Reggiani, fosse se tornar um filme que tenta, a todo custo, se provar dentro das normas do “bom gosto”, deixando de lado a riqueza dos exageros e a beleza do não-belo em prol de uma estética e uma narrativa limpa, higienizada e, pior de tudo, pouco memorável.
Casa Gucci é um projeto que já rodou tanto quanto Beyblade mundo afora. Desenvolvido desde 2006, o filme era um projeto de paixão de Ridley Scott, mas acabou passando pelas mãos de vários outros diretores, como Jordan Scott (a própria filha de Ridley) e até Wong Kar-wai, antes de retornar mais uma vez para as mãos do cineasta que trouxe Alien, o Oitavo Passageiro e, mais recentemente, O Último Duelo para o mundo.
Dessa vez, o projeto saiu do papel, tendo como base o livro House of Gucci: A Sensational Story of Murder, Madness, Glamour, and Greed, da autora Sara Gay Forden. E para completar o time de estrelas, um elenco recheado de verdadeiros corpos celestes: Lady Gaga, Adam Driver, Al Pacino, Jeremy Irons e Jared Leto. Parecia a receita certa. Mas o que faltou?
Já de começo, Casa Gucci é um filme que assusta pela sua duração. Quase duas horas e quarenta dedicados a todo o arco de Patrizia Reggiani, que conhece, se apaixona, casa, se separa e mata o milionário Maurizio Gucci, filho do dono de uma das marcas de moda mais conceituadas do mundo. E embora esse tempo pudesse ser bem utilizado, a verdade é que o filme peca por manter tudo sempre no mesmo tom.
As duas primeiras horas são estafantes, mornas e mais paradas que grama nascendo – e os quarenta minutos finais, que deveriam trazer todo o ápice emocional e um clímax bem definido, não conseguem dar o peso necessário para que sintamos a história fechando seu ciclo. O famigerado assassinato, que em momento algum se torna um ponto central da narrativa, vem e passa da forma mais blasé imaginada, sem dar aos personagens um momento de surto.
E é claro que algo nessas proporções poderia ser desastroso, mas existem fatores redentores aqui dentro – ou melhor, o filme é carregado nas costas doloridas de Lady Gaga. A atriz se compromete a fazer a Patrizia mais gloriosamente insana que consegue, elevando esses traços desde a primeira metade do filme até o final, onde consegue ser cômica e assustadora na mesma proporção.
Mais do que isso, ela é uma das poucas que vai contra a ditadura do bom gosto e não tem problema em jogar as mãos para o alto quando é necessário – na verdade, ela até parece saída diretamente de uma novela das seis da Globo – de preferência, de época e dirigida pelo saudoso Jorge Fernando. E para quem procura um teor de “prestígio”, isso pode ser até ofensivo de se dizer, mas a verdade é que ela é a única que compreende o peso do camp nessa história.
Há outros que ainda tentam – Al Pacino tem seus momentos e consegue ser muito divertido no papel de Aldo Gucci, mas é Jared Leto quem realmente parece ter caído num barril de LSD. Por mais duras que sejam as críticas que eu possa fazer ao “método” de atuação do astro, ele se compromete com a esquisitice de seu papel e é um dos atores que mais levanta a moral do filme com uma atuação propositalmente canastrona e infantil.
O problema é que, sendo uma história sobre Patrizia e Maurizio, ainda há uma parte a ser contada aqui – e talvez seja a parte mais “delongada” do filme – afinal de contas, o nome é Casa Gucci e não Casa Reggiani. Maurizio é vivido por Adam Driver e podemos ver claramente um ator muito bom também disposto a faturar uma estatueta durante o Oscar. E ele até manda bem – de verdade. O problema é que seu personagem parece um peixe fora d’água.
Isso até funcionaria se o roteiro de Becky Johnston e Robert Bentivegna explorasse melhor como Maurizio não é um “Gucci Raiz” – e isso até acontece um pouco no início, mas aos poucos vai se perdendo e do nada, quando nós finalmente temos a transição para o canalha sem coração e desleal, não há nenhuma construção nítida. Na verdade, parece ser apenas mais um desdobramento da personagem de Gaga, quase um apêndice de Patrizia.
E sendo ele o “norte” da narrativa, o que temos é um filme que se leva muito mais a sério do que deveria – e que peca ainda mais ao retirar Lady Gaga por uma boa parte do terceiro ato, enquanto está mais focado nas intrigas e delírios da diretoria da Gucci. Felizmente, o retorno da atriz na reta final é mais do que bem-vindo e torna todo o assassinato sem graça no prólogo de duas cenas verdadeiramente boas.
Não há dúvidas de que Ridley Scott é um bom diretor – mesmo tendo um ou outro filme esquisito em sua carreira. O cineasta já se provou mais de uma vez nos cinemas, e vê-lo transformando uma história tão suculenta e apetitosa em mais um simplório Oscar-bait é doloroso, ainda mais em um projeto tão grande que deveria ser opulento e caótico – tal qual a história dos Gucci.
E mesmo que o diretor quase nunca encontre essa dose de camp que seria tão bem-vinda, ele ainda é capaz de nos entregar um ou outro momento satisfatório – como a cena da balada onde Maurizio e Patrizia se conhecem, as poucas aparições de Rodolfo Gucci (Jeremy Irons), Tom Ford (Reeve Carney) e Anna Wintour (Catherine Walker), ou então todas as interações entre Patrizia e Pina Auriemma (Salma Hayek).
No fim, Ridley Scott até poderia aprender mais com as novelas brasileiras – sim, isso mesmo. Falta um pouco da malícia e do descompromisso dos nossos próprios folhetins para tornar Casa Gucci uma experiência realmente reveladora e memorável. Do jeito que é, é apenas mais um Oscar-bait que será esquecido em alguns anos, exceto pelos fiéis fãs de Lady Gaga.
Mesmo com sua cota de acertos, Casa Gucci é um filme que funciona muito mais pelos seus pedaços individuais que pelo conjunto da obra. É um filme morno com atuações perspicazes, uma história razoavelmente instigante (mas contada de um jeito fraco) e com pouco a dizer sobre o mundo da moda ou a decadência de uma tradicional família italiana. Se tivesse mais camp, tudo isso seria facilmente perdoado.
Casa Gucci está em cartaz nos cinemas.
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