Como desejamos ser representados na cultura pop?
Como desejamos ser representados na cultura pop?
No fim, é o momento de entender nosso Desejo quando se fala de representação
Ao longo de sua vida, você já parou para pensar em como é a sua representação na cultura? Qual desses espelhos fictícios te ajudou a entender melhor um pedacinho da sua psique? Ou quantas modas e citações você usou para moldar seu estilo e jeito de ser? Não é uma pergunta difícil, só leva um tempo para resgatar todas as respostas – se você consegue se lembrar da totalidade.
Nos últimos dias, discutimos sobre vários aspectos da comunidade LGBTQIA+ em materiais publicados na Legião e boa parte deles tocou em um assunto específico. Uma palavra que assusta e causa revolta em muita gente, mas que é uma das chaves para a humanização de minorias nos olhos da massa: a representatividade. Criticamos, contestamos, exigimos, mas faltou dizer o mais simples: o que queremos ver? O que torna uma representação digna?
Pode soar estranho para você, mas para parcelas excluídas da sociedade, é muito mais fácil citar o oposto, o que NÃO desejamos, afinal é o que mais recebemos. É um sistema de defesa automático. Reivindicar algo positivo requer uma autoestima e autoconfiança nascidas da segurança, de se sentir bem o suficiente para pensar no futuro, a longo prazo. É preciso estar em uma situação onde sua vida, direitos e voz não são ameaçados para se ter ambições que vão além do básico da sobrevivência.
Esse ainda não é o ponto onde a comunidade LGBTQIA+ se encontra hoje. Vários comentários nos materiais passados da Legião provaram um pouco disso. Somos alvos da opinião alheia, da decisão dos outros, de uma concordância estranha que nos enxerga como objetos passíveis da vontade externa e não como pessoas que existem, possuem histórias, vivências, amores, necessidades, ambições e desejos.
Mas isso não significa que não podemos exercitar o nosso desejar. Na verdade, mais do que em qualquer outro momento, essa é a hora de começarmos exigir mais que migalhas. Queremos nos enxergar de maneira clara para avançar cada vez mais rápido ao ponto onde até mesmo nossas pretensões e caprichos estejam no mesmo patamar daquelas do mundo hétero-cis.
O que é uma boa representação?
Devemos nos questionar, então, o que torna algo realmente representativo? Porque não basta criar um personagem gay ou abordar uma possível bissexualidade se eles forem vazios.
Não importa se uma história possui um contexto LGBTQIA+ se ele só é entendido pela comunidade e negado depois. Não interessa se uma empresa faz uma campanha sobre o Orgulho apenas no mês de junho e nos esquece depois – ou faz mal feita, não entende onde errou e tenta vilanizar quem criticou.
Existem, sim, representações excelentes na cultura pop hoje e minha proposta aqui é entender o que elas fizeram certo. Por que esses personagens e essas histórias se destacam na imensidão de vazio das outras?
Lá entre o final dos anos 80 e começo dos 90, quando os quadrinhos ainda engatinhavam em uma liberdade recém-conquistada com o enfraquecimento do código de censura americano, Neil Gaiman mostrou de várias maneiras diferentes como a diversidade pode funcionar em formatos fantásticos. Isso sendo um autor hétero e britânico, diga-se de passagem, o que torna a situação realmente impressionante.
Em Sandman, a epopéia quadrinesca brilhante do autor sobre o deus dos sonhos, existem histórias e personagens tão transgressores que até hoje não envelheceram ou racharam perante as mudanças da sociedade, mas que se mantém firmes como ícones da representatividade LGBTQIA+.
De todos os passíveis de análise, vou citar um caso em especial que, mesmo em 2021, mais de 30 anos depois, não foi superado e até parece mais atual: Desejo dos Perpétuos.
A personificação do Desejo
Como a expressão máxima do desejo pode representar alguém? Algo amplo, profundo e egoísta, um sentimento tão intrínseco e que, por vezes, parece pecaminoso devido a nossa criação ocidental cristã. Neil Gaiman soube responder isso muito bem.
Se você não leu Sandman, essa é uma história protagonizada pela personificação do Sonho, Morfeu, e seus irmãos Perpétuos que representam cada um uma faceta da identidade humana. Sonho, Morte, Desespero, Delírio, Destino, Destruição e… Desejo.
Desejo é apresentada como um ser não-binário, agênero, pansexual e assexual. Elu pode ser homem, mulher, estar no grande espectro entre essas concepções, ir para além deles ou apenas aboli-los conforme se sente mais confortável. Não só isso, mas representando o pináculo da ânsia humana, pode querer se relacionar com todos ou ninguém ao mesmo tempo.
Conceitos tão importantes para 2021, questionamentos sobre sexualidade e gênero surgiram com a personagem no final de 89, quando elu estreou na edição #10 de Sandman. É interessante como cada uma das características que forma Desejo ganharam espaço e voz na comunidade LGBTQIA+ e na sociedade apenas décadas depois. Nem mesmo as características mais sombrias e individualistas delu diminuem sua importância ou exemplo. Na verdade, deixam esse ser que vai além da nossa compreensão mais humano e é o que torna esse debate mais potente.
Elu é tão ou mais complexo que qualquer outro personagem, até mesmo se comparado ao protagonista. Suas vontades e verdades desafiam e intrigam o leitor e o herói. Sua participação na história é fundamental e marcante, mesmo que não apareça em todo quadro ou edição.
Desejo é uma personagem completa e nos faz perguntar, no mais íntimo do nosso ser, o que estamos reprimindo. Por que não amamos mais, queremos mais, buscamos mais, lutamos mais. E para a comunidade LGBTQIA+, por que nos contentamos com tão pouco sendo que, com a personificação do desejo como uma das nossas representações mais verdadeiras, por que limitamos nossas ânsias se os outros não o fazem?
Ser egocêntrico, idealista, orgulhoso, manipulador – traços de Desejo – são parte de qualquer ser humano. Elu encapsula o que a humanidade é e mostra ao agir aquilo que foi privado das minorias sociais. Não é sobre ser bom ou mau, até porque esses são conceitos dúbios em qualquer história, ficcional ou não; querer mais ou menos que o outro; é sobre ter a liberdade de ser e de desejar.
E se nos é permitido, queremos ser mais, viver mais, existir mais e desejar mais. Aquilo que nos é roubado dia-a-dia e além. Como qualquer ser humano. Como qualquer personificação da humanidade.
Assim, uma boa representação é aquela que apresenta sua verdade universalmente. Que não “poupa” a massa de enxergar a minoria que ela representa ou se esconde na subjetividade.
São personagens e histórias concretas, com alma, que não dependem do mês de junho, de uma tragédia ou da pressão popular para existir. Você encontra cada um desses pontos em Desejo, em Sandman e, claro, em várias obras publicadas e exibidas, mas que são um mínimo perto da avalanche cultural que vem do outro lado.
O recado que Desejo passa e que precisamos levar a partir de julho como comunidade é direto: desejem mais. Muito mais.
O Orgulho na Legião
Você acabou de ler um conteúdo especial do Momentos Legião em comemoração ao mês do Orgulho LGBTQIA+. Boa parte da equipe LH é composta por pessoas da comunidade LGBTQIA+ e a nossa missão é colocar luz em assuntos que são críticos para nossa causa. Queremos expressar nosso orgulho pelo movimento, por aqueles que pavimentaram nosso caminho e pelas novas vozes que estão surgindo. E, também, pelo lugar que nos permite falar tão abertamente sobre isso.
Nosso orgulho não termina em junho. Materiais especiais sobre a relação da cultura pop com a comunidade LGBTQIA+ continuarão sendo publicados em todas as nossas redes. Estamos no Instagram, no Twitter, no YouTube, no TikTok e, claro, aqui no site. Lutamos pela construção de um espaço seguro para todos em todos os momentos.
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