Artistas LGBTQ+ brasileiros falam sobre identidade, narrativa e comunidade

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Artistas LGBTQ+ brasileiros falam sobre identidade, narrativa e comunidade

Por Leo Gravena

Até alguns anos atrás, quadrinhos estavam apenas nas bancas e charges, e somente nos jornais. Com a internet e redes sociais, surgiu uma maior facilidade para que artistas pudessem mostrar seu trabalho para um grande público, páginas de artistas criando histórias em quadrinhos e tirinhas de humor ficaram bastante populares e, dessa forma, artistas LGBTQIA+, que não tinham muito espaço na grande mídia, puderam crescer, florescendo e evoluindo com um público engajado naquilo que eles tinham a dizer.

Qualquer pessoa que tivesse interesse em quadrinhos antes dos anos 2000, provavelmente cresceu vendo pouquíssimas representações gráficas de personagens e relacionamentos LGBTQIA+; por mais que muitos ainda digam que “se interessam apenas pela história” ou que “a sexualidade de um personagem não importa” é imprescindível notar a pouquíssima quantidade de personagens e narrativas não-heterossexuais apresentadas nessa mídia até então.

Com as poucas migalhas de representatividade oferecidas e com a ajuda da internet para divulgar seu trabalho, diversos artistas começaram a se destacar na internet, trazendo para o público LGBTQIA+, carente por narrativas queer, um reflexo de suas vivências através de artes sequenciais, ou seja, quadrinhos e tirinhas.

Foto da primeira edição da POC CON, em 2019. Evento foi sediado no Osaka Naniwa-Kai.

Para todos os públicos

Em 2019, a POC CON reuniu diversos artistas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ e cerca de 3 mil pessoas em São Paulo, em 22 de junho – um dia antes da parada do orgulho LGBTQ+ da cidade. Como a culminação de anos de artistas queer cada vez mais tomando seu espaço, o evento foi um grande sucesso e retorna esse ano com uma edição virtual, após um “evento pocket” em 2020.

Um dos fundadores do evento, Rafael Bastos explica que desde a concepção do evento a ideia é que ele seria aberto para todos, motivo pelo qual a entrada é gratuita, porém, apenas artistas LGBTQIA+ podem expor seu trabalho ali. “Muita gente diz que teve outra projeção após a POC CON. O público de feiras independentes é bem diferente, eles são mais interessados e mais ativos”. Outro fator importante para a organização é que a feira fosse aberta para todos os públicos.

“A feira é de artistas LGBTQIA+, mas a feira não é apenas para pessoas LGBTQIA+. Uma das maiores dificuldades é que acreditam que esses artistas criam apenas para dentro da comunidade. Às vezes o público que é de fora acaba pensando isso. É preciso quebrar a ideia de que esse é um tipo de produção que se retroalimenta. A maior parte de cultura que a gente consome são feitas por pessoas hétero. Todo tipo de arte pode ser consumida por todo mundo”, disse Bastos.

Pôster da POC CON EM CASA 2021. Arte de Verônica Berta.

Um tema comum entre artistas queer é que na maior parte das vezes, suas narrativas não são propositalmente sobre personagens lésbicas, gays, trans ou bissexuais. Mas sim que, como criadores que fazem parte dessa comunidade, isso é algo que naturalmente surge em suas obras e, mesmo quando a sexualidade ou gênero não são explicitamente abordados, são temas que estão sempre como um pano de fundo de suas histórias.

“Nunca fez parte da minha agenda falar diretamente da causa LGBTQIA+, mas por eu ser uma pessoa que faz parte da comunidade e por estar falando da minha vida, querendo ou não, eu estava falando disso o tempo todo” disse o ilustrador e escritor Aureliano Medeiros, conhecido nas redes sociais como “Oi, Aure”.

Recentemente, Aureliano republicou Madame Xanadu, uma história ilustrada que conta a história de uma drag queen que é uma figura misteriosa e marcante de Natal, tudo sob a visão de um jornalista que está tentando descobrir mais sobre a personagem. Tendo publicado a história anos atrás, ele a revisitou junto da Editora Nacional, reescrevendo alguns capítulos e redesenhando todas as artes.

“É na sutileza. É no jeito do personagem, na forma de falar e interagir com as pessoas no mundo”, ele diz, explicando o motivo de seus personagens mais famosos – o Peladinho e a Chapeuzinho Vermelho – terem sido abraçados por todos os públicos. “O tempo todo falo sobre personagens LGBT+ e estou trabalhando com a questão da identidade. Eu falo bastante disso e trabalho muito com perspectiva, esses personagens também são LGBT+, mas isso não é a coisa mais importante da vida deles”.

O mesmo acontece com Cecília Ramos, que nas redes sociais atende por Cartumante. Tendo começado a criar tirinhas em 2017, ela reuniu vários de seus trabalhos em “Memes São a Salvação”, que também traz histórias inéditas e foi finalista do HQ Mix de 2020 na categoria Publicação de Tiras.

“Às vezes não fica tão explícito na hora de escrever que é um personagem LGBT+”, ela diz sobre suas histórias, explicando que como desenha vários seres com características animais, nem sempre o gênero e sexualidade dos personagens estão claros para o leitor. “As vezes é sobre trazer personagens que estão em relacionamentos e abordar diretamente em postagens mais políticas e de sátira”.

A artista também explicou que na maior parte das vezes tenta criar tirinhas de um humor mais ácido e satírico. Em uma charge de 2020 ela brinca com a cobrança feita por pessoas dentro e fora da comunidade LGBTQIA+ à pessoas bissexuais que se relacionam por um longo tempo com apenas um gênero, “Tento fazer piada disso, fazer críticas de forma satírica. Acho que o humor é a melhor forma de convencer as pessoas de que você está certo”.

Um grande sucesso nas redes sociais, a webcomic Arlindo foi criada por Luiza de Souza, a Ilustralu durante as eleições de 2018, como uma tentativa de conscientizar as pessoas sobre as falar problemáticas que elas estavam reproduzindo. “A base de Arlindo veio daí, para mostrar para as pessoas que têm crianças ouvindo o que elas estão falando”. Porém, após as eleições, ela decidiu mudar o personagem, o transformando em um adolescente. “Falar dele criança não teria tanta pauta. O personagem adolescente teria mais o que explorar e foi aí que Arlindo surgiu oficialmente”, explica Luiza, que começou em 2019 a publicar as páginas da história semanalmente.

Um dia após ter sido lançado oficialmente em capa dura, publicado de forma independente pelo Catarse, Arlindo chegou ao segundo lugar na lista de HQs e Graphic Novels mais vendidos em Literatura e Ficção para Adolescentes na Amazon; provando o sucesso do projeto e mostrando como várias pessoas se identificaram com o personagem. Segundo a autora, contudo, “Arlindo não é só um menino gay, ele é todo o resto das coisas que ele é”.

“Arlindo é a história de um menino aprendendo a ser quem ele é. Eu nunca quis que o fato dele ser LGBT fosse a coisa principal da história. É parte principal da história porque é quem ele é, não por ele ser gay ou ter um romance, mas queria mostrar o quanto ser LGBT influencia no resto da nossa vida, nas coisas que a gente sonha, nas coisas que queremos, não necessariamente só em relacionamentos”, diz Luiza, explicando que sempre quis mostrar o personagem como “Um filho amoroso, um irmão gentil, um amigo leal”.

Frase do livro Arlindo. Arte e texto de Ilustralu.

Queer coding e representações ruins

Por mais que muitas pessoas acreditem que arte deve ser algo higienizado e completamente alheio a temas como política e sexualidade, os quadrinhos e tirinhas sempre se apresentaram de uma forma que instiga os leitores a pensarem e repensarem conceitos e ideias. “Quando eu era adolescente, minha noção do que era ser uma pessoa LGBT era a de uma vivência de sofrimento. Em todo canto que a gente lia e via era isso, então entendemos que era errado existir. Por isso quero continuar escrevendo esses personagens e essas histórias”, Aureliano diz ao falar sobre a representação de pessoas queer na mídia.

“A gente cresceu com essas referências vilanizadas do LGBT+”, complementa Luiza. “Desde a Disney até quadrinhos mesmo, existem vários vilões queercoded” ela diz, destacando a importância de apresentar Arlindo como um personagem que é um menino de bom coração e que é queer.

Não é de hoje que o termo queer coding se enraizou na comunidade LGBTQIA+; ele se refere a personagens que não são explicitamente queer, porém utilizam-se de trejeitos, visuais e toda uma codificação em sua representação que deixa subentendido que aquele personagem não é heterossexual ou cisgênero. Seja o Ele (As Meninas Super Poderosas), Ursula (A Pequena Sereia), Scar (O Rei Leão), Hades (Hércules) e até mesmo o James da Equipe Rocket (Pokémon), muitos vilões sempre tiveram trejeitos que poderiam ser entendidos pelo grande público como queer, porém, isso nunca era confirmado na história e também algo desmentido pela produção dessas obras.

Mas qual o problema de que quase todos os vilões de nossas infâncias sejam queercoded? Isso começa pelo fato de que, pela falta de outros tipos de representação, essa fosse a única imagem da comunidade LGBTQIA+ por muitos anos: vilões caricatos, invejosos e malignos. Algo que apenas recentemente está mudando, com novas figuras e representações queer sendo assimiladas pelo grande público de filmes, quadrinhos e outras mídias.

Segundo Aureliano, “O público LGBTQ+ é muito carente. Essas pessoas demoram a se encontrar nesse tipo de mídia. Meu trabalho sempre teve uma aceitação muito boa, tanto de pessoas LGBT+, que procuram essas poucas representações, como as de fora da comunidade”. Para o ilustrador, o principal motivo das pessoas se identificarem com sua arte e seu texto é a forma como ele se inspira em seu próprio cotidiano, sua própria vivência e aprendizado para escrever as histórias.

Vivência LGBTQIA+

Luiza, a Ilustralu, explica que propositalmente colocava eventos de sua vida na jornada de Arlindo, “Às vezes aconteciam coisas na minha vida que eu colocava na trama e se tornavam algo maior que dava para acrescentar à história”. Já para a Cartumante, isso veio de uma forma muito natural, que ela acredita ser fruto de estar sempre escrevendo quadrinhos autorais. “Uma vez me perguntaram ‘por que você desenha suas personagens femininas com pelos nas pernas?’ e aí percebi que não era algo premeditado. Essas coisas acabam saindo naturalmente, é como uma extensão daquilo que você está vivenciando”, Cecília explicou sobre a criação de suas personagens.

Frase e arte de Aureliano (@OiAure).

Toda a questão de identificação e representatividade é algo que está sempre em pauta quando o assunto são narrativas LGBTQIA+. Rafael Bastos, que também é ilustrador e quadrinista, explicou que logo após a primeira edição da POC CON ele e Mario César, coorganizador do evento, receberam várias mensagens e emails de pessoas falando sobre como se sentiram acolhidos e representados no local, porém, uma em particular se destacou.

“Uma das mais emocionantes foi de um jovem, com cerca de 16 anos que disse ‘meu sonho sempre foi ir para a parada, mas ainda não me assumi para meus pais, mas fui na POC CON e senti que estava em um lugar que era livre, naquele momento eu senti que podia ser quem eu era’”, disse. “É muito emocionante ver esse tipo de depoimento, das pessoas que sentem que possuem um espaço no qual elas podem ser quem são. É triste pensar que a gente precisa de toda uma estrutura para isso. Mas pensar que em um nível a gente conseguiu proporcionar isso é indescritível”.

Um espaço seguro e uma comunidade que está ali para ser uma rede de apoio é algo essencial para que muitos dos artistas LGBTQIA+ possam crescer e se sentirem aceitos em um meio bastante competitivo e, muitas vezes, preconceituoso. “Muitos artistas recebem backlash [uma reação contrária forte] por deixar claro que são pessoas LGBT+ e esse sentimento de comunidade traz um fortalecimento pessoal. É importante ver pessoas que estão produzindo arte como você”, Rafael explica, citando também a necessidade de apoio. “O mais importante é o sentimento de ter pessoas que estão entendendo o que você está falando. O sentimento de comunidade te fortalece a seguir produzindo”.

Cecilia deixa claro: “Ser artista independente é uma trajetória muito solitária”. A ilustradora por trás do Cartumante então complementa explicando como ter uma comunidade para te apoiar é algo valioso para um artista. “Essa rede de apoio é super importante, primeiro para você não se sentir sozinho, para ter alguém com quem dividir as dores de fazer parte desse meio, e segundo porque fortalece a comunidade”. A artista cita vários momentos nos quais após conversar com outras pessoas ela viu que seu trabalho tinha um valor maior do que o oferecido por empresas e trabalhos de freelance. “Ultimamente também não estou sentindo competitividade“, ela diz, citando como vê, cada vez mais, colaborações entre artistas diferentes.

Mas se o clima atual é um indicativo do que vem pela frente, podemos esperar ainda mais histórias protagonizadas e trazendo narrativas focadas em personagens LGBTQIA+. Aureliano deixa claro que não pretende mudar suas referências, “Para mim não existe a opção de escrever um personagem que não seja LGBT+. Se tem tantos escritores e autores hétero que só escrevem sobre personagens hétero, porque eu seria obrigado a escrever personagens hétero também? Não acho que seja necessário”.

Já após Arlindo, Luiza pretende continuar criando narrativas queer. Mesmo tendo feito vários zines – revistas independentes mais simples – Arlindo foi sua primeira narrativa sequencial longa, “Eu nunca tinha feito uma história grande, queria fazer uma história maior, mais complexa com mais personagens dentro dela. Quando comecei a fazer Arlindo, foi porque queria fazer um quadrinho grande para aprender a fazer isso e, aí sim, fazer os quadrinhos que eu queria fazer. Então vai ter muita coisa ainda por vir, muitas histórias LGBT+”.

POC CON EM CASA 2021

Toda a questão de ter uma comunidade apoiando artistas LGBTQIA+ é algo bastante importante para a POC CON, que na edição deste ano lançará um projeto especial para ajudar com a visibilidade de artistas queer. Além de trazer uma gibiteca virtual na qual vários artistas expõem seus trabalhos e suas HQs para serem lidos gratuitamente, esse ano será lançado o “Vale de Talentos”, uma iniciativa que irá compilar as informações de vários artistas da comunidade LGBTQIA+ e tem como intuito criar um grande banco de dados que pode ser acessado por qualquer um em busca de artistas, quadrinistas e cartunistas.

Segundo Rafael Bastos, o plano é que futuramente o projeto seja utilizado por empresas em busca de artistas queer. “O Vale de Talentos terá inscrição gratuita e qualquer artista LGBTQ+ pode se inscrever. A ideia é que artistas possam conhecer mais artistas LGBTQ+ e também esperamos que eventualmente seja uma ferramenta que no futuro possa ser utilizada por empresas para a contratação de artistas para campanhas, freelas e ações”. Dessa forma, será feita uma seleção para que eles possam se certificar de que os artistas estão preparados para lidar com contatos profissionais, de forma que eles darão preferência para aqueles que possuem um portfólio e um perfil profissional.

Ilustralu, OiAure e Cartumante estarão na POC CON EM CASA 2021. Confira a programação do evento abaixo:

Programação da POC CON EM CASA 2021.

Celebração do Orgulho na Legião

Você acabou de ler um conteúdo especial do Momentos Legião em comemoração ao mês do Orgulho LGBTQIA+. Boa parte da equipe LH é composta por pessoas da comunidade LGBTQIA+ e a nossa missão é colocar luz em assuntos que são críticos para nossa causa. Queremos expressar nosso orgulho pelo movimento, por aqueles que pavimentaram nosso caminho e pelas novas vozes que estão surgindo. E, também, pelo lugar que nos permite falar tão abertamente sobre isso.

Assim, até o último dia de junho, materiais especiais sobre a relação da cultura pop com a comunidade LGBTQIA+ serão lançados em todas as nossas redes. Estaremos no Instagram, no Twitter, no YouTube, no TikTok e, claro, aqui no site.

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