[CRÍTICA] Estou Pensando em Acabar com Tudo, da Netflix
[CRÍTICA] Estou Pensando em Acabar com Tudo, da Netflix
Um transtorno de personalidade em forma de filme!
Novo lançamento da Netflix, Estou Pensando em Acabar com Tudo é o mais recente projeto de Charlie Kaufman, o roteirista e cineasta por trás de filmes como Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Anomalisa, Adaptação e Sinédoque, Nova York. Lançado na última sexta-feira, o filme tem tido uma repercussão muito polêmica.
Um verdadeiro show de experimentalismo e narrativa abstrata, o filme tem deixado muitos confusos com sua história aparentemente sem sentido. Porém, será que no meio da cacofonia audiovisual há algo a ser dito ou é um filme vazio e confuso além do necessário? Aqui está a nossa crítica do filme – e já adianto: não espere encontrar respostas aqui, pois só temos novas perguntas!
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Ficha Técnica
Título: Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things)
Direção e Roteiro: Charlie Kaufman
Ano: 2020
Data de lançamento: 4 de setembro (Netflix)
Duração: 134 minutos
Sinopse: Uma jovem mulher viaja com seu namorado para a fazenda isolada dos pais dele. Ao chegar, ela começa a se questionar sobre tudo o que sabe sobre ele e sobre ela própria.
Estou Pensando em Acabar com Tudo e sua energia caótica
Você sonha? Se sim, certamente já deve ter tido sonhos insanos, onde as pessoas e os momentos parecem efêmeros, onde a narrativa e a temporalidade é fragmentada, e onde sua própria identidade pode ser tão manipulada e etérea quanto algo imaterial. Na arte, não nos faltam exemplo de projetos e narrativas que lidam com a qualidade onírica, mas poucos se comparam a Estou Pensando em Acabar com Tudo.
Lançado na última sexta-feira, o filme – com seu título extravagante e chamativo – é uma viagem lisérgica pelos confins da mente de Charlie Kaufman. Originalmente conhecido por seus dotes de roteirista (e aqui, podemos listar filmes bem únicos e originais como Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e Adaptação), mas fez sua transição para a carreira de diretor com os notáveis Sinédoque, Nova York e Anomalisa.
O filme é baseado no livro homônimo de Iain Reid, e explicar sua história não é tão fácil quanto parece. Acompanhamos uma noite na vida de uma Jovem Mulher (vivida pela excepcional Jessie Buckley), que viaja com seu namorado Jake (interpretado por Jesse Plemons, em um dos papéis de destaque de sua carreira) para conhecer os pais dele, que vivem em uma fazenda.
Já de início, Estou Pensando em Acabar com Tudo prova que não é um filme “fácil” e muito menos “compreensível”. Sua narrativa é construída em cima de uma experimentação bem peculiar, fruto da carreira consolidada de Kaufman. A criação dos personagens e das situações nas quais eles são colocados é totalmente abstrata, enquanto reinam os longos e poéticos diálogos sobre a miserável condição humana.
E se o começo ainda brinca de enganar a percepção de seus espectadores de forma mais leve e sutil, o segundo ato vem para escancarar a natureza non-sense da trama, durante todo o segmento que se passa na casa dos pais de Jake. Aqui, o casal é vivido por Toni Collette (em uma performance cheia de trejeitos e afetações) e David Thewlis (mais contido, mas não menos excêntrico).
Nessa sequência, os dois acabam tendo conversas muito tensas – e é importante prestar o máximo de atenção às respostas e reações de Jake às falas de seus pais -, enquanto a temporalidade nos guia por um rumo cada vez mais confuso. O pai e a mãe do protagonista vêm e vão, aparecendo mais jovens e mais velhos, em diferentes momentos de suas próprias vidas, formulando toda uma ideia sobre a construção de nossas próprias temporalidades.
E não é apenas com o tempo que o filme brinca. Em toda a concepção da personagem da Jovem Mulher – que às vezes é referida como Lucy, Lucia, Louisa e Ames -, temos um questionamento abstrato sobre construção de identidade e personalidades fluidas (algo que posteriormente é incorporado no próprio Jake e em outro personagem que existe na trama).
Essa construção acaba remetendo a outros filmes que também brincam com essas ideias, como por exemplo Cópia Fiel (Abbas Kiarostami, 2010) e Holy Motors (Leos Carax, 2012). Claro que a forma como Estou Pensando em Acabar com Tudo trabalha essas questões é diferente e bem mais errática, mas os dois filmes podem funcionar como uma boa sugestão para quem quer algo nessa pegada.
E não para por aí, os diálogos também são uma das provas do discurso psicológico e esquizofrênico do filme. Carregados de poesia e de pequenos jogos de semântica, eles acabam carregando múltiplos significados dentro de sua própria verborragia, o que até me lembrou um pouco de Deus da Carnificina (Roman Polanski, 2011). Ainda assim, é importante ressaltar que toda essa pompa para falar não significa que o filme tem algo a dizer.
Pode parecer confuso e anti-intuitivo, mas a realidade é que Estou Pensando em Acabar com Tudo é um filme com muito material e muito texto, mas tudo é vazio e pedante. O mais chocante disso? Isso parece ser uma decisão consciente e proposital de Charlie Kaufman, que deseja não apenas brincar com seus personagens em um mundo onde as regras da realidade não necessariamente se aplicam, mas também tecer pequenas críticas a centenas de assuntos, que vão desde a toxicidade de alguns relacionamentos à arrogância da arte e dos artistas.
Se você tem dúvida disso, analise a forma como o filme trabalha suas referências. Temos zilhões de easter-eggs e links com os mais inimagináveis produtos literários e cinematográficos, de John Cassavetes a Guy Debord. É quase como se Kaufman brincasse o tempo inteiro com um certo preciosismo acadêmico, uma vontade de parecer mais inteligente do que é – e isso é feito de uma forma deliciosamente consciente.
Agora você deve estar se perguntando: tá, mas depois de todo esse lero lero, o filme é bom? Posso ver sem medo? Vou ficar entediado? É mais um filme ruim da Netflix? Então, sendo bem honesto aqui: eu não sei. Na verdade, duvido até mesmo que os envolvidos na produção saibam. É um filme tão sensorial e absurdo que é difícil compreendê-lo como um filme.
É difícil até mesmo enquadrá-lo em um gênero. Por mais que seja descrito como drama, horror e mistério, ele não se encaixa bem em nada disso. Ele pode muito bem ser uma comédia, um suspense psicológico e até mesmo um musical. Ele não chega a ser arthouse e nem experimental, mas está muito longe de ser um blockbuster. Desafio você a tentar encontrar uma classificação que abrace a completude da obra.
Querem saber a verdade? Estou Pensando em Acabar com Tudo é o tipo de filme que poderia muito bem ser uma estrela. Ou três. Ou dois e meio. Ou cinco. Ou estrela nenhuma. Na verdade, isso serve para qualquer tipo de produção. A arte raramente pode ser quantificada de uma forma satisfatória.
O que Charlie Kaufman faz em seu filme é uma profunda ode à superficialidade, à memória e à identidade. Entre problemas e acertos, é um filme que não deve ser tão compreendido quanto deve ser sentido. É o tipo de obra que te guia por sonhos e por devaneios, formando uma narrativa incondicionalmente única. Se você vai gostar ou não? Bem, aí é única e exclusivamente com você.
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Estou Pensando em Acabar com Tudo está disponível na Netflix.