[CRÍTICA] O Diabo de Cada Dia, da Netflix

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[CRÍTICA] O Diabo de Cada Dia, da Netflix

Por Gus Fiaux

Chegando à Netflix nesta última quarta-feira (16), O Diabo de Cada Dia é o mais novo longa original da plataforma de streaming, baseado no livro de Donald Ray Pollock. Categorizado como um horror psicológico que explora o “mal nosso de cada dia”, o filme está chocando com sua violência e sua brutalidade.

Com um grande elenco, composto por nomes como Robert Pattinson, Sebastian Stan, Riley Keough, Jason Clarke e Tom HollandO Diabo de Cada Dia é uma experiência bem interessante. E agora, você pode ler a nossa crítica do mais novo filme da Netflix!

Créditos: Netflix

Ficha Técnica

Título: O Diabo de Cada Dia (The Devil All the Time)

 

Direção: Antonio Campos

 

Roteiro: Antonio Campos e Paulo Campos

 

Ano: 2020

 

Data de lançamento: 16 de setembro (Netflix)

 

Duração: 138 minutos

 

Sinopse: Personagens sinistros convergem ao redor de um jovem homem devoto a proteger àqueles que ama em uma cidade interiorana que sofre com a corrupção e a brutalidade.

O Diabo de Cada Dia: Um conto sobre culpa cristã e o abismo no coração da humanidade

2020 tem sido um ano bem… intenso – seja no campo da arte ou fora dele. Nunca, ao menos desde a virada do século, nos voltamos tanto para a introspecção e reflexão de nossas próprias vidas e de tudo que nos envolve. De muitas forma, o mais novo filme da NetflixO Diabo de Cada Dia é um olhar fuzilante para os cantos mais sombrios da alma humana.

Adaptação do livro de Donald Ray Pollock (publicado em 2011 e sucesso imediato de vendas), o filme segue uma estrutura bem peculiar, ao abordar a vida de diversas pessoas no interior rural dos Estados Unidos, num período que abrange as décadas de 40, 50 e 60. Na narrativa, as vidas de completos estranhos se entrecruzam no grande emaranhado de violência, brutalidade e, sobretudo, culpa cristã.

Em suas pouco mais de duas horas, O Diabo de Cada Dia não tenta, em momento algum, desenvolver personagens ou criar figuras memoráveis. Na verdade, o filme faz justo o oposto, criando figuras tão ordinárias e comuns que a história acaba ganhando um toque universal, quase um conto de fadas deturpado e sanguinário que trabalha as miríades sombrias da humanidade e da fé.

E é justamente por não trazer personagens desenvolvidos e bem definidos que o filme não pode ser analisado em um nível baixo e superficial. Aqui, não há “a história de fulano que se liga à de beltrano e interfere na vida de ciclano“. É muito mais que isso, já que seus personagens funcionam, de certa forma, como arquétipos que apontam uma crítica específica a um aspecto da cultura americana.

Pegue, por exemplo, Bill Skarsgård – que dá início ao filme e é uma alegoria firme ao “Sonho Americano”. Da mesma forma, temos Robert Pattinson como uma metáfora da igreja, Eliza Scanlen como o fiel cego por sua própria fé, Sebastian Stan como a corrupção da força policial, Jason Clarke Riley Keough como o casal padrão que esconde um segredo gigantesco… a lista é longa.

E é justamente nos pequenos elementos que devemos nos concentrar – nos aspectos e forças características que esses personagens representam na trama. Falar algo a mais além disso é se comprometer a dar spoilers do filme, e não tenho intenção de fazê-lo. Basta dizer que O Diabo de Cada Dia pode ser uma história sobre personagens norte-americanos no interior dos Estados Unidos, mas bem que poderia se passar no Brasil, em Joanesburgo, na Romênia… em qualquer lugar do mundo.

A grande unidade dramática que confere consistência ao longa está justamente em suas críticas e tiradas em relação à religião, sobretudo a fé institucionalizada. Todos os personagens são retratados, em alguma escala, como figuras lunáticas e alienadas ou como pessoas completamente passivas, que esperam a ação divina em todos os níveis de suas vidas.

Tudo isso fica muito evidente com o emprego de crucifixos e símbolos cristãos em quase todas as cenas do filme. Essa recorrência serve não apenas para lembrar o espectador da forte presença da fé no filme, como também da ideia de martírio e sacrifício, que está muito presença em um ciclo constante de violência que começa desde os primeiros minutos de O Diabo de Cada Dia. 

E nesse sentido, as cenas verdadeiramente sanguinárias – cenas que exploram a maldade humana em seu ápice, o abismo da moralidade disfarçado sobre a máscara da “tradição e dos bons costumes” – ganham um novo tom, uma retratação ácida que chega a lembrar o aclamado Sangue Negro (2007, Paul Thomas Anderson), ainda que com requintes do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.

E nem sequer dá para dizer que O Diabo de Cada Dia é um filme repetitivo, já que sua proposta é justamente mostrar um ciclo. Dessa forma, é bem fácil descobrir, desde a primeira hora, o que vai acontecer com tal personagem no fim do longa. Isso cria até mesmo uma sensação de agouro, uma expectativa pelo pior que definitivamente vai acontecer.

E é nesse sentido que o elenco forma a base mais forte do filme, mais que o roteiro bem amarrado ou a direção singular de Antonio Campos. No longa, Tom Holland faz o papel de protagonista (mesmo aparecendo apenas aos quarenta minutos da trama). Ele está ótimo, mais contido e atuando através do que não é dito – o que cria uma ligação excelente com outros colegas de elenco.

Por esses outros, falo principalmente de Jason Clarke, Sebastian Stan e, é claro, Robert Pattinson. Cada um deles representa um desafio diferente a Holland, uma forma de explorar a maldade cotidiana. Eliza Scanlen Riley Keough também dão peso ao elenco, formando as duas personagens mais complexas e subestimadas da trama, cada qual com um nítido arco que não necessariamente é resolvido.

Mas isso faz parte. Com O Diabo de Cada Dia, vemos mais uma reflexão absurda a respeito da psiquê humana, tanto no que diz respeito às nossas trevas interiores quanto à mania de muitos de disfarçar na fé e na religião um sentimento de ira que é tudo, menos divino. É curioso ser mais um projeto de 2020 explorando o ciclo infindável de violência, tal qual o game The Last of Us: Part IIalvo de polêmicas há alguns meses.

Como filme, O Diabo de Cada Dia é uma experiência única e, ao mesmo tempo, universal. Talvez peque pelos excessos – há pelo menos uns dez minutos sobrando ali, principalmente no segundo ato – e pela obviedade de sua proposta. Ainda assim, é um filme que se compromete com suas críticas da forma mais violenta possível (no bom sentido).

Com excelentes atuações, uma direção singular e um roteiro bem estruturado, O Diabo de Cada Dia é mais um acerto da Netflix, em um ano onde o streaming está comprovando frequentemente a qualidade de suas produções. Se você não tem medo de encarar o abismo dentro de si, é um filme mais do que bem-vindo.

Abaixo, veja imagens do filme:

O Diabo de Cada Dia está disponível na Netflix.