Vingando o Legado: Capitão América
Vingando o Legado: Capitão América
“Eu poderia fazer isso o dia todo.”
Há um desafio constante na narrativa de personagens “escoteiros”, com uma aguçada bússola moral. Por mais que figuras como o Superman, o Ciclope e o Capitão América representem o auge da idoneidade ética de seus respectivos grupos, é compreensível que eles sejam comumente ofuscados por figuras mais “errôneas”, como o Batman, o Wolverine e o Homem de Ferro.
O motivo por trás disso se dá pela identificação e pela relação com o público. Embora esses personagens sejam portadores do bem e da moral, estandartes da perfeição, eles acabam soando perfeitos e “certinhos” demais – o que é, em essência, uma virtude pouco humana.
Ainda assim, a trama de Steve Rogers cresceu nos cinemas, deixando para trás esse arquétipo e se tornando o mais honrado dos Vingadores, ao mesmo tempo em que sua jornada se afastou de um norte ético incorruptível, andando por caminhos um pouco mais ambíguos.
Criado na década de 40, durante o ápice da Segunda Guerra Mundial, Steve Rogers surgiu como um herói propagandista. Embora suas histórias tivessem um grande valor de entretenimento, seu propósito sempre foi conscientizar e incentivar a população norte-americana a lutar contra a ascensão nazista – e, no caminho, ganhar alguns trocados convertidos em recursos para o exército.
E embora ele tenha se tornado um grande ícone da Marvel Comics, sua criação precede a fundação da editora. Na verdade, ele só seria inserido nesse universo na quarta edição da revista dos Vingadores, cerca de três anos após a publicação da história inaugural do Quarteto Fantástico, que foi o pináculo inicial da Casa das Ideias.
Nos cinemas, sua criação também veio um pouco depois de grandes heróis. Mesmo recebendo o subtítulo de O Primeiro Vingador, o primeiro filme do herói foi lançado em 2011, três anos após o filme que abriu as portas do Universo Cinematográfico da Marvel.
Talvez a origem mais fiel da franquia até o momento, a história segue de forma bem similar aos quadrinhos. Acompanhamos Steve Rogers, um rapaz mirrado e subestimado se submetendo à experiência que o transformaria em um super-soldado, lutando pelos Estados Unidos (e pela liberdade) nos frontes de guerra europeus.
Sua transformação física é impressionante, mas não há consequências psicológicas. O mesmo Steve magro, capaz de se deitar sobre uma granada para proteger seus camaradas, se transformaria no Super-Soldado, a arma definitiva contra a dominação de tiranos.
Em Capitão América: O Primeiro Vingador, ainda somos apresentados aos coadjuvantes que transformaram o herói através das décadas de sua existência. De um lado, temos Peggy Carter, o amor duradouro e que representa a vida “tranquila” que ele sempre quis levar, ao lado de alguém que sempre esteve disposta a arriscar a vida pelo bem.
Do outro lado, temos Bucky Barnes, um amigo de longa-data que se torna o memorando de que a guerra é pessoal e próxima, a partir do momento em que é sequestrado pelas forças inimigas. Mesmo após ser resgatado, ele ainda nos serve de lembrete, quando pula para a “morte” durante o cerco a um trem da HIDRA.
Aliás, por falar na HIDRA, é interessante que eles representem o vilão máximo de Rogers. Uma organização tecnoterrorista e fincada nos ideais nazistas, eles representam a corrupção e a tirania, liderados por uma figura tão sinistra quanto o Caveira Vermelha.
Em seu filme, Rogers aprende o valor da sacrifício. Após perder seu melhor amigo, ele faz de tudo para impedir o Caveira Vermelha de destruir Nova York – e para isso, acaba abrindo mão do amor de sua vida, ao sacrificar-se nas águas congeladas do Oceano Atlântico, de onde só seria tirado após meio-século.
Em Os Vingadores, conhecemos o Capitão América mais popular dos quadrinhos: o homem fora de seu tempo. Uma figura que ainda precisa se adaptar a todas as mudanças que o mundo moderno batizou, enquanto luta se manter relevante e benigno em uma era onde os limites morais são bem mais ambíguos.
Não é surpresa que, por conta disso, ele constantemente represente uma oposição simétrica ao Homem de Ferro. Se Rogers representa os ideais clássicos e a moralidade intocável, Stark é o retrato de uma era moderna, onde às vezes os fins justificam os meios. O choque entre passado e presente é evidente.
Ainda assim, ele demonstra o seu melhor e consegue se provar um verdadeiro líder, tornando-se o chefe tático dos Heróis Mais Poderosos da Terra em sua primeira missão contra Loki e os Chitauri.
Contudo, os eventos do filme o mudam completamente – e os efeitos disso são testemunhados em Capitão América: O Soldado Invernal. Embora ainda lute pelos ideias de sua época, Steve acaba percebendo que o mundo mudou – e que se quiser continuar sendo um super-herói, precisa acompanhar essa mudança.
Os dois catalisadores dessa transformação são a descoberta de que a) Bucky Barnes estava vivo, e b) A HIDRA havia sobrevivido e se infiltrado na S.H.I.E.L.D. como uma parasita. A primeira descoberta serve para provar-lhe que a moralidade não é mais como ele pensava ser. Seu melhor amigo, um sinal de “inocência” e “pureza”, havia se transformado em um assassino implacável após anos de controle mental.
A segunda, por sua vez, é algo mais global. É a prova de que seu amado país, os Estados Unidos da América, não eram mais o estandarte da liberdade e da vitória. Se, no período da Segunda Guerra Mundial, tudo parecia mais unidimensional e claro, agora na era da guerra urbana, os limites haviam sido borrados e Steve precisou se abrir para a ideia de que o mundo era colorido em tons de cinza.
É aqui que começa sua verdadeira transição. De um soldado fiel dos EUA, aliado do governo e das autoridades, ele passa a ser uma figura vigilante, que compreende que governos possuem suas próprias agendas e ideais, e nem sempre elas têm a ver com a liberdade popular.
Após derrotar a HIDRA em um último golpe, ele ainda continua buscando a inocência e os modos dos velhos dias, alistando Sam Wilson em uma cruzada pessoal para encontrar o Soldado Invernal, desaparecido após poupar sua vida.
Aliás, Sam se torna um grande amigo para Steve. Um lembrete de que ainda há homens lutando pela preservação de sua pátria, mesmo que em frontes distintas. Líder de um grupo de apoio para veteranos, Falcão representa ideais próximos aos de Steve, embora seja uma figura mais “leve” e mais livre.
Em Vingadores: Era de Ultron, continuamos a ver o embate ideológico entre Steve Rogers e Tony Stark. Se, por sua vez, os dois conseguiam já trabalhar em conjunto, fornecendo a dinâmica do músculo e do cérebro da equipe, respectivamente, ainda havia lacunas entre suas motivações.
Tudo isso chega ao ápice com a construção de Ultron. Enquanto Tony tem seus motivos para construir uma inteligência artifical que sirva de escudo para o mundo, Rogers sabe o perigo que isso representa para a liberdade civil, especialmente após ter acabado de derrotar seu inimigo mais letal na forma de uma organização nazista e totalitária.
Esse conflito faz com que os dois tenham uma discussão acalorada, embora consigam unir as forças para deter o robô assassino. No fim, após a grande transformação, Stark percebe seu erro e dá um passo para trás, deixando que o Capitão América assuma, quase que integralmente, a liderança dos Vingadores.
E é assim que começamos em Capitão América: Guerra Civil. Embora não tenha o mesmo peso dos quadrinhos, a saga adquire um tom muito mais íntimo e particular nos cinemas, trazendo em seu cerne a disputa ideológica entre Steve Rogers e Tony Stark, construída desde o primeiro encontro dos dois.
E é aqui que vemos como esses personagens evoluíram de uma forma inversamente proporcional. Se Stark havia começado como um rebelde que tinha pouco apreço pelas regras e pela burocracia governamental, ele logo se torna uma peça importante da máquina, após perceber todos os erros que já havia cometido ao longo de sua vida.
Já Rogers exerce o papel oposto. Um agente do governo e da manutenção da autoridade, ele se vê obrigado a lutar contra as leis e regras quando os Acordos de Sokóvia são outorgados pelas Nações Unidas. E é isso que faz com que ele se veja um clandestino à margem da lei.
Claro que, no cerne disso, há um problema bem mais pessoal. Bucky Barnes estava de volta, e representava a última chance de Steve de resgatar e salvar seu melhor amigo – novamente, um lembrete de inocência. Tudo isso motiva um conflito que envolve não apenas o Homem de Ferro, mas todos os Vingadores – cada qual de um “lado”.
No fim, descobrimos que tudo não passa de um plano cruel arquitetado por Zemo – até então, o único vilão que havia sido capaz de devastar os Heróis Mais Poderosos da Terra e parti-los, de dentro para fora.
Ainda assim, o estrago é feito. Após algumas revelações sombrias, a relação entre o Capitão América e o Homem de Ferro é destroçada, forçando o Sentinela da Liberdade a fugir com outros heróis, considerados ilegais pelo novo sistema de análise e vigília dos vigilantes.
Quando Vingadores: Guerra Infinita começa, percebemos que o Capitão América pode ter se despido de seu escudo e da bandeira norte-americana, mas não de seus ideais. Ele luta com todas as suas forças, especialmente quando Thanos envia seu exército à Terra, ameaçando antigos aliados.
Quando o Titã Louco finalmente se faz presente, ele mesmo faz de tudo para deter o vilão, chegando a jogar-se na frente de alguém muito mais poderoso que ele para poder impedir o massacre universal – aliás, vale lembrar-se que seu lema é “eu poderia fazer isso o dia todo”. E ainda assim, ele fracassa.
Em Vingadores: Ultimato, vemos um herói fragmentado, tentando a todo custo manter o sentimento de esperança vivo – mesmo que o dele próprio esteja dobrado. E isso permanece assim até que se faz presente a chance de voltar ao passado e reunir todas as Joias do Infinito, desfazendo os atos do Titã Louco.
E é justamente a sua volta ao passado que rende as melhores cenas. O momento em que confronta seu eu-antigo não apenas serve como uma ótima cena de ação e alívio cômico, como também é a representação física de como ele precisou confrontar seu alter-ego mais “inocente” e inexperiente nesse mundo moderno.
Ao fim, ele nos surpreende ao enfrentar o Titã Louco sozinho e portando o Mjölnir – provando o que sempre soubemos: que sua dignidade é incomparável. Lágrimas até escorrem quando pensamos no momento icônico em que ele lidera os heróis na batalha, entoando “Avante, Vingadores!”.
Quando a batalha se encerra, temos o momento mais… controverso de sua jornada. Isso se dá quando ele decide retornar ao tempo, após devolver as Joias do Infinito às suas respectivas realidades, e viver ao lado de Peggy Carter pelo resto de seus dias, em uma possível linha temporal alternativa.
É aqui que vemos a conclusão de como ele e o Homem de Ferro são opostos e evoluíram de formas opostas. Se Stark ao fim renunciou sua identidade humana para morrer como um super-herói (“Eu sou o Homem de Ferro”), Rogers decide se presentear com uma vida de paz após uma vida de luta, partindo para seu “final feliz”.
Entretanto, a jornada do Capitão América não para aí. O escudo é um legado, um símbolo. Ele não pertence a uma pessoa, mas sim àquele que é mais capaz de defender os ideais de liberdade. E é por isso que Rogers não hesita em passá-lo para o Falcão, que (de maneira lógica) é o melhor candidato para manter seu legado.
No fim, o Capitão América optou por uma vida como Steve Rogers, tendo seu descanso final. É um momento delicado e bonito, que mostra como o personagem evoluiu e se transformou, embora sempre se ponha abaixo dos outros. É o fim de uma jornada excepcional, que transformou um escoteiro “certinho” em um herói que reconhece a necessidade da ambiguidade.
Mais do que isso, é a origem de uma nova história. A trama de Steve Rogers pode acabar aqui, mas a jornada do Capitão América continua eternamente.
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Vingadores: Ultimato está em cartaz nos cinemas.