Terror Tupiniquim – Academia Brasileira de Letras e o Medo Imortal!
Terror Tupiniquim – Academia Brasileira de Letras e o Medo Imortal!
Quem disse que os autores clássicos brasileiros não mergulharam no horror?
Inaugurada em julho de 1897, a Academia Brasileira de Letras veio para eternizar os maiores autores e obras literárias de língua portuguesa, com a produção voltada para o Brasil. Em seu rol de ilustres membros – os “imortais” –, nomes como Machado de Assis, Bernardo Guimarães e Aluísio Azevedo se firmaram como alguns dos maiores representantes de nossa cultura literária.
E embora eles sejam conhecidos por suas produções românticas, naturalistas e ufanistas, poucos sabem que alguns de seus membros chegaram a mergulhar no outro lado – um lado mais sórdido e tenebroso da humanidade, o horror.
Felizmente, essas produções estão sendo resgatadas atualmente em Medo Imortal, a nova coletânea de contos lançada pela Darkside Books, que explora a fundo as nuances fantásticas e sombrias de treze membros. O livro apresenta um pouco de tudo, desde um horror surrealista que remete a H.P. Lovecraft a produções regionalistas, que exploram o medo em cada canto desse país gigantesco.
E nesse artigo, iremos falar um pouco mais sobre essa obra atemporal.
Medo Imortal não se limita à curadoria dos contos selecionados para o livro. Além disso, há uma introdução especial para a edição e prefácios para cada um dos autores, explicando um pouco de suas origens e como eles chegaram ao horror, seja de forma direta ou indireta. Além disso, o livro também conta com ilustrações caricaturais espetaculares do premiado artista Lula Palomanes.
Mas falar bem das edições da Darkside Books é deixar chover no molhado. O que importa aqui é o conteúdo – e temos coisa de sobra. A começar pelo grande regente da literatura nacional, Machado de Assis. O livro começa com uma coletânea de contos do autor, que explora medos corriqueiros e assombrações, mas que vez ou outra embarca em alguns temas impressionantes, como racismo – vale lembrar que Machado de Assis era neto de escravos, por mais que boa parte das imagens e ilustrações divulgadas pela mídia constantemente o “embranqueça”.
Em suas obras presentes no livro, somos levados a uma viagem que envolve cadáveres, fantasmas e até mesmo igrejas malditas. Dois de seus contos se destacam com muita força aqui: A Igreja do Diabo, que conta um “causo” de como o próprio coisa-ruim decidiu fundar sua congregação, e Pai Contra Mãe, que toca em temas sensíveis e tem como protagonista um caçador de escravos foragidos.
E após essa brilhante introdução, somos levados a conhecer outros autores, como Álvares de Azevedo. Apesar de ter morrido extremamente jovem, o escritor deixou ao mundo uma obra icônica em Noite na Taverna, que está presente integralmente aqui. A novela explora um grupo de homens contando suas experiências sádicas e sinistras sob a luz baixa de uma taverna.
Esse talvez seja um dos grandes destaques da coletânea, e uma obra obrigatória para quem quer conhecer mais do escritor que se tornou um dos expoentes mais populares da tradição ultrarromântica.
Em seguida, temos três capítulos, dedicados exclusivamente a Bernardo Guimarães, Fagundes Varela e Coelho Neto. Os três partem para um horror mais interiorano, regional, enquanto exploram as contradições e variações dentro do Brasil. Seus contos são rápidos e de fácil leitura, e indico de cada um deles, respectivamente, A Dança dos Ossos, A Guarida de Pedra e, por fim, A Casa Sem Sono.
Posteriormente, entra Aluísio Azevedo, outro grande escritor, dessa vez associado ao realismo/naturalismo. Contudo, em seu único conto presente no livro, Demônios, ele adentra uma atmosfera sutil e quase onírica, que culmina em um final cheio de simbolismos que beiram o império do medo cósmico de Lovecraft. Na trama, um homem de repente percebe que o sol não nasceu novamente, que todos no mundo morreram e que a Terra está infestada de demônios, como o próprio título sugere.
Posteriormente, mais autores exploram os medos regionalistas do país há cerca de um século. Afonso Celso adentra no terror interiorano do Mato Grosso em contos como Valsa Fantástica, enquanto Inglês de Souza retrata o pavor amazônico em Acauã e o pernambucano Medeiros e Albuquerque traz narrativas mais globalizadas, em O Soldado Jacob.
A reta final do livro não perde esse aspecto particular de cada região brasileira, e expande inclusive para os medos da cidade grande. Afonso Arinos vai atrás de um horror mais rural, em Garupa, enquanto João do Rio explora todas as facetas sórdidas e sanguinárias do Rio de Janeiro, sobretudo no conto O Bebê da Tarlatana Rosa.
Os dois últimos autores do livro trazem verdadeiros deleites apavorantes em suas obras. O primeiro deles é Humberto de Campos, que abraça uma vertente mais pulp que até se compara aos penny dreadfuls europeus e norte-americanos e aos filmes de horror de baixo orçamento que seriam lançados alguns anos após suas obras.
Em Monstros, ele cria uma perversão na forma de uma criatura “forjada” pela Morte e pela Dor. Já em Os Olhos que Comiam Carne, ele se aproxima de uma ficção científica que lembra, de certa forma, filmes como O Homem Invisível, um clássico dos Monstros da Universal.
Já a segunda autora é um fenômeno à parte – e foi uma decisão brilhante da Darkside inseri-la na obra. A carioca Júlia Lopes de Almeida esteve envolvida diretamente na criação da Academia Brasileira de Letras, mas acabou não se tornando integrante por um fator revoltante: era mulher, e mulheres não eram aceitas na instituição, que seguia a tradição da academia francesa.
Ainda assim, suas contribuições para a literatura são inúmeras, e Medo Imortal deixa um gostinho de “quero mais” após a leitura de seus contos. Ela traz um diferencial nítido para a coletânea, com obras voltadas para a perspectiva feminina – que incluem temas discutidos até hoje, como machismo, abuso e feminicídio.
Todos os seus seis contos presentes no livro são espetaculares e merecem atenção, mas destaco Os Porcos e O Caso de Ruth como os mais interessantes, por trazerem uma espécie de horror visceral e até mesmo grotesco, e por tocarem em algo que apavora mais do que qualquer assombração: a maldade humana.
Através dessa resenha, espero mostrar como a cultura literária brasileira é vasta e não se limita apenas aos livros que somos “obrigados” a ler para o vestibular. Mesmo entre os escritores mais “clássicos” de nossa tradição, há espaço para o fantástico e até mesmo para um gênero tão popular quanto o horror.
Fica os parabéns também para a Darkside pode ter feito um compilado tão importante e interessante. Há muita coisa a ser discutida a respeito dessa obra, e o mais importante já foi feito: os imortais continuam imortais, seja na vida, na morte ou no horror.
Na galeria abaixo, fique com imagens da edição:
Medo Imortal está à venda nas livrarias de todo o país. Você pode adquirir o livro aqui.