Tenhamos Fé no cinema de M. Night Shyamalan!
Tenhamos Fé no cinema de M. Night Shyamalan!
Com licença, moço(a), posso te falar sobre Shyamalan um segundinho?
Atenção: Alerta de Spoilers!
Ame ou odeie, M. Night Shyamalan se tornou uma das maiores vozes criativas do cinema comercial contemporâneo. O cineasta irrompeu em Hollywood no ano 1999 através de O Sexto Sentido, filme no qual cada frame exalava um controle absoluto do diretor. Tamanha minúcia aos detalhes técnicos ganhava ainda mais força por conta do roteiro intrincado, escrito pelo próprio Shyamalan. Roteiro este que abarca um dos maiores plot twists (viradas de enredo) da cultura popular. Não é exagero algum afirmar que o primeiro filme de Shyamalan se tornou um clássico instantâneo não apenas por sua estrutura enxuta, mas por ser uma obra ideal como chamariz criativo. Depois de O Sexto Sentido, o mundo todo esperava a próxima criação do diretor. É aí que as coisas ficam interessantes.
Shyamalan abordou uma pluralidade de gêneros bastante variada através de seus filmes. Não importa se sejam suspenses sobrenaturais, filmes de heróis, ficções científicas ou fantasias, as obras sempre carregam idiossincrasias muito particulares do diretor.
Foi após o filme A Vila (2004) que a crítica especializada rompeu relações com Shyamalan e, de repente, não era mais legal adorá-lo no meio cinéfilo. Dali pra frente, tivemos Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos (2008), dois filmes massacrados pela imprensa por fugirem da rédea normativa do cinema tradicional. Você vai encontrar na internet afora pessoas que defendem a carreira de Shyamalan com unhas e dentes afirmando que o diretor nunca teve uma fase ruim. É o Culto de Shyamalan. Hoje, eu vou tentar te converter a ele.
Antes de entrarmos para valer nessa, é necessário pontuar a zona cinza de filmes Shyamalan, que julgo serem realmente insossos. O Último Mestre do Ar (2010) é uma adaptação medíocre, embora como filme isolado seja aceitável (não, não é a bomba que muitos acusam). Depois da Terra (2013) é um blockbuster tépido que existe para amaciar o ego de Will Smith e seu filho. O cheque de Shyamalan pelo filme deve ter sido gordo. Seguindo.
Em 2000, Shyamalan iniciava uma inusitada trilogia que só teria conclusão este ano, em 2019. Corpo Fechado apresentava Bruce Willis como David Dunn, um homem que passa a acreditar deter o poder da super-força. Eis aqui um tema recorrente em todos os filmes do diretor: a fé. Seja do indivíduo ou de um coletivo, é normal que seus personagens apresentem cicatrizes emocionais traumáticas que precisem ser superadas. É um mote bastante recorrente que se repete obra após obra, frequentemente com o uso do fantástico como um remédio ou catarse que faz a ponte para seus personagens se libertarem dessas correntes de sofrimento interno.
Independentemente das variantes narrativas, os filmes de Shyamalan são centrados em fé, seja em seu exercício individual, coletivo, ou sua ausência perante traumas psicológicos. O Reverendo Graham Hess e a culpa pela morte da sua esposa em Sinais. A garota abusada pelo tio em Fragmentado. O síndico cuja família foi assassinada em Dama Na Água e os traumas pessoais de cada um dos irmãos que protagonizam A Visita (2015), para citar alguns exemplos.
E tem também Fim dos Tempos. Ah, Fim dos Tempos. Fim dos Tempos é onde a discussão fica acalorada quando abordamos a filmografia de Shyamalan. É um filme que, após ser descartado por todos como ruim e intragável, passou a ganhar um séquito de seguidores segregado em dois grupos. O grupo 1) diz que o filme é uma comédia não-intencional, um acidente cinematográfico tão incalculado que é um milagre algo tão anti-cinema existir no grande circuito comercial de filmes. Já o grupo 2) afirma se tratar de um comentário sobre irracionalidade, paranoia coletiva, estresse traumático pós 11 de setembro abrangendo até nossa relação de destrato com a natureza. Soa pretensioso por parte de um crítico de cinema pescar uma destas morais e vesti-la no filme. O que intriga é que, ao assistir a obra, ela pode ser tanto todas essas coisas quanto nenhuma. Nunca é chato revisitá-la e eu o faço sempre que a oportunidade surge. É um filme no qual Mark Wahlberg fala com plantas; o mote de um personagem é ter uma estranha fixação em cachorros-quentes e as atuações são tão anêmicas que contribuem para algo tonalmente único. No mesmo filme, existe um plano mostrando uma corrente de suicídios, com a câmera focando em uma arma no asfalto. A sequência é tão brilhante que poderia facilmente estar presente no melhor filme de Steven Spielberg que nunca existiu.
Shyamalan também é um mestre na arte de evocar pavor. Sinais é intenso em diversas sequências; A Vila possui algo de ominoso impresso na fotografia primorosa assinada por Roger Deakins e, até Dama Na Água, com a criatura Scrunt e seu recurso de camuflagem, cuja presença é denunciada pelo sistema de irrigação do condomínio, é capaz de causar calafrios. Shyamalan entende os meandros do suspense eficaz e já admitiu seguir uma das máximas de Alfred Hitchcock neste sentido. O assassino ensanguentado correndo na direção do protagonista não é assustador. Assustador é saber que o assassino está na mesma casa que o protagonista, espreitando.
O curioso em se analisar a filmografia de Shyamalan é ver como o diretor surpreende o grande público quando bem entende. Fragmentado agitou as bilheterias, sendo um suspense que nos prendeu na poltrona sem abandonar o tema de traumas e o fantástico tão recorrentes na filmografia do artista. É um filme tão bem dirigido e fluído que o diretor parece tê-lo concebido sem grande esforço. Então, ele estreia nos cinemas e se torna um sucesso. Shyamalan sabe muito bem o que a massa quer ver nas telonas, tamanho seu nível de autorismo que, de vez em quando, ele simplesmente escolhe desafiar o público geral. Desferir um chute para nos arremessar fora do lugar comum mesmo que isso custe a reputação dele como cineasta em Hollywood. Mesmo que ele tenha de dirigir filmes como diretor de aluguel para poder financiar suas próprias obras posteriormente. Impossível não respeitar isso.
Vidro, deste ano, é o maior manifesto autoral da filmografia de Shyamalan. Sim, o filme sofre de excessos aqui e ali, mas não deixa de fazer algumas coisinhas geniais no processo. O fato das cores ligadas aos personagens esmaecerem ou vibrarem conforme eles perdem/ganham a fé em seus super-poderes é um toque legal. Muitos comparam Vidro com seus antecessores, Corpo Fechado e Fragmentado. Na verdade, ele se parece mais com Dama na Água, justamente por ser um veículo através do qual Shyamalan tenta tecer um comentário sobre sua obra e o cinema moderno.
Criamos esperança após Fragmentado. Queríamos ver David Dunn colidindo violentamente com a Besta. Conseguimos isso em doses escassas, através de cenas de ação minimalistas e inventivas que jamais entregam o espetáculo gestado pela nossa expectativa coletiva. Em plena era de Universo Cinematográfico Marvel e DC, o cara foi lançar um filme sobre heróis sofrendo crise existencial em um hospital psiquiátrico. Os próprios personagens falam sobre uma batalha em uma torre grandiosa prestes a ser inaugurada. É sugerido então o combate visceral e épico diante de um público e tudo mais. Era isso que queríamos ver e Shyamalan balança na nossa cara como um naco de carne para cachorro esfomeado. O que temos no lugar? Cenas de ação minimalistas em um estacionamento.
David Dunn morre em uma poça d’água. Kevin leva um tiro. Vidro agoniza até a morte. Nada de um festival de ação no topo de arranha-céus, sendo que o diretor era perfeitamente capaz de entregar isso. Ele até mostra através da narrativa de seu filme que está plenamente ciente deste fato. É um exercício em frustração, um teste da nossa fé. Sobra a mensagem no núcleo de tudo. Existem sistemas que não querem que você acredite em si mesmo, mas deveria. Novamente, o exercício da fé diante do fantástico. É difícil acreditar em si mesmo hoje em dia, mas Shyamalan gostaria que você tentasse.
O fato de Shyamalan sofrer tanto nas mãos da crítica especializada diz algo sobre o cinismo que impera na internet hoje em dia. Muitas das críticas pesadas que lemos por aí carregam dentro de si um ar desdenhoso e pedante de “Eu Faria Melhor”. Para citar o jornalista Tim Rogers falando sobre Kingdom Hearts III, essa é a coisa sobre a arte. Alguém vai falar que faria melhor. Então, alguém mais inteligente vai falar, “Não fez por quê?”. M. Night Shyamalan é alguém que foi lá e fez. Segue fazendo e, por tecer mundos idiossincráticos em seus filmes, muitos acabam os taxando de ruins através de um discurso engessado numa escola de crítica cinematográfica conformista e cansada.
Espero que vocês partilhem do evangelho de Shyamalan e que juntos, possamos exercer nossa fé neste cineasta extremamente criativo. Que Shyamalan siga surpreendendo e entretendo a todos nós. Amém.
Confira abaixo a nossa galeria sobre Vidro: