Sequências espirituais: Uma nova chance para quem não tem mais chance!
Sequências espirituais: Uma nova chance para quem não tem mais chance!
Game over. Continue?
Esta semana, foi lançado um dos games mais esperados dos últimos quatro anos, tido como um dos maiores lançamentos de 2019, apesar de ser um jogo independente. Trata-se de Bloodstained: Ritual of The Night, tido como o sucessor espiritual dos títulos da série Castlevania pós-Symphony of the Night, jogo divisor de águas dentro da franquia.
O jogo anda sendo muito bem recebido tanto pela crítica especializada quanto pelo público, fazendo a alegria de quem liberou uma graninha via Kickstarter para fazer o projeto sair do papel. Mas muito mais que isso, ele nos lembrou de um fenômeno que não é novo, mas que enche o coração daqueles que queriam uma sequência ou novo jogo de uma franquia dada como morta de esperança: seu jogo preferido não precisa morrer. Só reencarnar.
Sequências espirituais são uma maneira de dar sobrevida a jogos que já tiveram sua chance, mas que por um motivo ou por outro, foram deixados de lado por suas desenvolvedoras ou foram simplesmente esquecidos por todos. Mas quando é uma boa ideia reviver um jogo através de outro? Dá certo sempre?
Muita gente há de concordar que a trajetória de Castlevania se divide em antes e depois de Symphony of The Night. Em 1997, ano de lançamento do game, os fãs da tradicional franquia de ação se viram surpresos com o jogo que tinham nas mãos, que abandonara o bom e velho plataforma dividido por fases por uma experiência com elementos de RPG, como níveis, itens utilizáveis, armas e armaduras que aumentam ou diminuem seus atributos, uma narrativa muito mais detalhada e onde a exploração ditava o rumo de tudo.
Adotando um estilo de jogo similar ao de Super Metroid, onde existe um mapa enorme para ser explorado e completado, com áreas secretas e itens escondidos, o jogo foi um grande sucesso de vendas e determinou a tendência que seria seguida pelos games seguintes da série pelos próximos 11 anos, cunhando inclusive um novo termo, amplamente usado até hoje: o Metroidvania.
E os fãs de Castlevania tem um homem a agradecer por tudo isso: o produtor Koji Igarashi, ou simplesmente IGA, responsável por revitalizar a franquia para os 32 bits e por mudar para sempre como o jogo era visto e jogado por todos.
Após ser dispensado em 2014 por uma Konami bem diferente da empresa que era quando ele entrou, já que agora ela parecia mais interessada em fazer máquinas caça-níqueis exclusivamente para o público japonês do que se dedicar a suas franquias consagradas, IGA não parou quieto e engoliu a derrota.
Ele pegou inseparável chapéu de cowboy, suas ideias para o futuro de Castlevania e iniciou uma campanha no Kickstarter para um jogo que seria ao mesmo tempo uma experiência nova e uma ode a tudo o que fazia os títulos da série produzidos por ele serem grandes jogos.
Nascia aí Bloodstained: Ritual of the Night, que só não tinha Castlevania no nome, mas que era, essencialmente, um Castlevania. Com isso, IGA mandava um recado claro para a Konami: se eles não amam mais a franquia, tem quem ame. Ou, nas palavras de Thanos, “Eu mesmo faço isso.”
Quatro anos e cinco milhões de dólares arrecadados depois, Bloodstained chega contando a história de Miriam, uma guerreira com a habilidade de usar os poderes de inimigos derrotados como seus próprios, em uma jornada para impedir que um velho amigo destrua o mundo e para descobrir segredos de seu próprio passado. E como era de se esperar, IGA e sua equipe não decepcionaram e entregaram aos fãs de Castlevania não só exatamente o que eles queriam, mas também o que mereciam.
Temos aí um excelente exemplo de uma sequência espiritual bem sucedida de uma franquia querida, mas maltratada por sua própria produtora. E como dito anteriormente, esta não é uma prática nova, mas às vezes é necessária.
O primeiro Zelda é tido como sucessor espiritual para o game Adventure, que por sua vez sucedia o jogo de texto Colossal Cave Adventure. A série Yakuza, sucesso da Sega, também “continua” Shenmue, mais um jogo da casa, apresentando diversos elementos do jogo clássico, embora seja mais voltado para a ação.
Se comprometer a reviver uma história cujo potencial não foi totalmente explorado é algo que tem muito mais a ver com coração e arte do que com grana e lucro. É claro que a segunda parte ainda é extremamente importante, mas pegar uma trama que marcou sua vida e dá-la toda uma nova roupagem para que seu legado continue vivo é muito mais trabalhoso e exige muito mais comprometimento, e porque não dizer amor, do que simplesmente fazer uma sequência qualquer. Principalmente quando se trata de uma empresa de jogos independentes, cujo orçamento vem inteiramente de doações, como foi o caso de Bloodstained.
Até mesmo o Brasil, um dos países onde mais se joga vídeo game no mundo – apesar dos pesares – entrou na onda das sequências espirituais e foi muito bem sucedida nisso. A desenvolvedora Aquiris, que antes já emplacaram sucessos como Knights of Pen and Paper e Chroma Squad, tomou para si um grande desafio: reviver as emoções do game Top Gear, clássico absoluto do Super Nintendo, na forma de um jogo totalmente novo, mas com um pézinho no original.
Lançado inicialmente como um jogo para dispositivos móveis, como celulares e tablets, Horizon Chase tinha inspirações escancaradas a Top Gear, não escondendo em nenhum momento que tinha a ambição de ser a sequência não-oficial do game. A Aquiris conseguiu inclusive trazer o compositor Barry Leitch, responsável pela trilha sonora do primeiro Top Gear, para o projeto.
O resultado foi tão impressionante que algum tempo depois o game ganhou uma versão repaginada e melhorada chamada Horizon Chase Turbo, saindo dos celulares e indo para os principais consoles da geração atual. Assim como o título original, ganhou notas altas dos críticos e foi abraçado pelos fãs de jogos indies, principalmente no Brasil, que parece ter mais amor por Top Gear do que o resto do mundo.
Mas essa não é uma ideia a prova de falhas. Lembram que mencionamos lá em cima que para suceder espiritualmente um jogo ou franquia querido de uma maneira eficiente, é preciso pensar com o coração primeiro e na grana só depois? Esse não parece ter sido o caso de Mighty nº 9, que ambicionava suceder o na época esquecido Mega Man e fracassou miseravelmente nisso.
Keiji Inafune criou o robozinho azul na Capcom nos idos anos 80, com o personagem estrelando jogos com um padrão de qualidade (e desafio) tão alto que eles ajudaram a marcar a época de ouro dos consoles de 8 e 16 bits, transformando o “Meguinha” praticamente no mascote da empresa japonesa. Até que a década de 2000 chegou e ele foi sendo cada vez mais deixado de lado.
A estratégia de Inafune foi parecida com a de IGA: através do Kickstarter, ele criou uma campanha que arrecadou milhões de dólares em um espaço inacreditavelmente curto de tempo, financiado por fãs descontentes com a forma como as empresas estavam tratando suas franquias preferidas e sedentos de uma experiência similar, mas diferente. Mas ao contrário do japonês do chapéu de cowbow, Inafune meteu os pés pelas mãos.
Mesmo após incontáveis adiamentos, Inafune tentava financiar outros projetos paralelos, como uma série animada de Mighty nº 9 e um outro game chamado Red Ash, que por sua vez seria a continuação espiritual de outro título do robozinho azul, Mega Man Legends. Essa falta de foco acabou se refletindo na produção do game prometido inicialmente, que era adiado de novo e de novo e parecia até ter sido piorado em trailers posteriores.
Quando o jogo finalmente saiu, veio a decepção: gráficos pobres, telas de carregamento desnecessárias e longas, problemas de jogabilidade, bugs e mais um sem-número de inconvenientes imperdoáveis para um game independente com um orçamento de mais de $4 milhões. E no final, Inafune ainda mandou para os jogadores descontentes um “É melhor do que nada”, para terminar a desilusão.
A necessidade dos seres humanos por continuar em contato com uma experiência que marcou suas vidas de uma maneira positiva é tão importante para a alma quanto beber água ou respirar oxigênio é para o corpo.
Como um cara muito legal disse uma vez, nem só de pão vive o homem, e alguns dos maiores sucessos do cinema, da literatura e dos games, que beberam de outras fontes e ficaram de pé sobre os ombros de gigantes, mostram isso.
E que venham mais jogos como Bloodstained. Nosso coração maltratado pelo descaso alheio agradece.
Veja também várias imagens de Bloodstained: Ritual of the Night na nossa galeria: