Easter-egg: herói ou o vilão?
Easter-egg: herói ou o vilão?
O cinema está sabendo balancear o desejo dos fãs com roteiros decentes?
Não adianta chiar ou reclamar: a cultura nerd veio para se manter e se estabilizar nas raízes do cinema blockbuster contemporâneo, encontrando um lar onde é bem-recebido e confortavelmente levado para a vida de seu público, seja nas salas de cinema, na frente da TV, nas lojas de DVDs e Blu-Rays ou até mesmo no oceano de produtos licenciados.
Não é à toa que hoje, mais do que em qualquer momento dessa curta história da sétima arte, temos visto uma verdadeira explosão de filmes com temas similares: super-heróis, quadrinhos, distopias, protagonistas super-poderosos e batalhas épicas. Se você bater em um arbusto na frente de qualquer cinema na sua cidade, saem pelo menos vinte filmes do tipo em cartaz apenas em um mês.
Claro que isso tem trazido a tona uma série de discussões a respeito de como esse blockbuster moderno trata o público – e muitas delas renderiam artigos e textos sensacionais. Mas hoje venho falar sobre um elemento que nunca mais vai sair de moda: o easter-egg.
Para quem ainda é leigo no assunto, vamos a uma rápida definição: easter-egg é um nome designado para falar de uma surpresa escondida. Se você manja da língua inglesa, sabe que essa expressão significa, originalmente, “ovo de páscoa”. O significado de uma “surpresa escondida” vem com o fato de que, em alguns países, os pais propõem uma verdadeira caça ao tesouro para que os filhos encontrem seus preciosos bens achocolatados no feriado religioso.
Trazendo isso para os cinemas, o easter-egg originalmente era uma surpresa escondida dentro de alguma cena específica. Um pequeno detalhe que, se você piscasse, deixaria passar. E para compreendê-la, você deve ao menos ter um conhecimento sobre o que tal easter-egg significa. Uma referência a outro filme. Um nome que faz muito sentido nos livros e HQs. Uma pista visual que é cheia de simbolismos.
Mas uma coisa que sempre ficou clara é: o easter-egg jamais deve ser determinante para a apreciação ou não do filme. Ele é um bônus, um extra para o qual os fãs mais fervorosos podem sorrir com o canto da boca quando percebem o que o diretor quis deixar implícito em seu roteiro ou em suas filmagens.
No entanto, nos últimos anos, essa lógica tem se subvertido cada vez mais. O easter-egg passou a ser o objetivo em vez da side quest, assumindo um papel protagonista em muitos filmes. E isso tem atrapalhado alguns filmes.
Você, caro leitor deste site, abriu o texto e já se deparou com uma foto de Shazam! e Deadpool. Deve ter ligado os pontos e achado que o humilde redator que vos fala vai descer a lenha em ambos os filmes. Mas antes de me xingar nos comentários, aqui vai um alerta de spoiler: não irei.
Antes de mais nada, precisamos fazer um curso básico para falar de easter-eggs. Resumirei em uma sentença: o culpado por tudo é o Universo Cinematográfico da Marvel. Ponto final.
Antes do primeiro filme do Homem de Ferro, os filmes de super-heróis sempre tiveram uma dose mais contida das referências escondidas – e boa parte disso se dava ao fato de que cada filme era sua história única. Não havia muita preocupação em se criar um universo compartilhado – e a prova disso é o desastre cronológico que testemunhamos a mais de vinte anos no Universo dos X-Men.
Entretanto, a Marvel Studios deu o primeiro passo e percebeu que poderia criar uma mega-franquia habitada por esses personagens tão clássicos das HQs. A partir daí, a noção de uma saga transmídia que se estabelece em diversos filmes até chegar em um ponto de culminação pareceu cada vez mais atraente. Alguns longas depois, chegamos à epítome de tudo: Os Vingadores.
Se você é um fã fervoroso desse universo, sabe como a Marvel conseguiu construir ligações através de pequenos easter-eggs em seus filmes. Em um deles, um cara sério de tapa-olho aparece para conversar com o protagonista. No outro, um empresário famoso dá as caras em um bar. Em outro deles, na casa desse empresário, vemos um escudo com uma estrela no centro.
Pouco a pouco, esses easter-eggs vieram criando uma franquia cheia de pequenos detalhes, que fez com que os fãs mais ávidos pudessem observar suas sagas favoritas com outros olhos.
E é claro que depois que Homem de Ferro, Viúva Negra, Thor, Hulk, Gavião Arqueiro e Capitão América arrecadaram, juntos, mais de US$ 1 bilhão e meio nas bilheterias mundiais, todos os estúdios adjacentes também foram seduzidos pela mesma ideia.
A Fox, que já tinha uma franquia consolidada em seus X-Men, passou a produzir spin-offs e derivados. A Sony tentou a todo custo emplacar seu Espetacular Homem-Aranha. E a DC, desde 2013, deu início ao seu universo, que após uma decolagem turbulenta, parece estar voando muito bem em direção a paragens lucrativas e prósperas, sem a sombra de um certo visionário.
Porém, cada vez mais, os filmes estão se tornando uma piscina cheia de referências para todos os lados. Chegou ao ponto que muitos desses filmes – incluindo exemplares lucrativos – têm pouco a falar por si só. Eles são, em grande parte, carcaças para que os estúdios lotem seus filmes de comerciais e propagandas para o que virá a seguir. E nesse sentido, deixe-me falar de três exemplos específicos:
– O Espetacular Homem-Aranha 2: embora o filme tenha lá suas qualidades, ele só serviu para que a Sony tentasse montar um universo do Amigão da Vizinhança, inserindo tramas e referências secretas que nunca viriam a ser utilizadas, dado o fracasso comercial nas bilheterias.
– Vingadores: Era de Ultron: o filme que quase nos fez pensar que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Embora seja divertido e possua personagens carismáticos, o longa quase se tornou uma catástrofe para estabelecer tramas que não diziam nada a respeito de sua história própria – como umas certas joias coloridas, por exemplo.
– Batman vs Superman: A Origem da Justiça: podemos todos apenas sentar em silêncio por um momento e nos lembrar da cena em que a Mulher-Maravilha para todos os seus afazeres para ver um teaser de Liga da Justiça? Obrigado.
Claro, todos nos somos fãs e queremos service, mas o problema é quando isso compromete a história para tornar o que seria um filme apenas um trailer de duas horas dos próximos lançamentos. E infelizmente, com os estúdios descobrindo como capitalizar em cima dos easter-eggs – sejam pequenas referências, cenas pós-créditos ou até mesmo participações especiais – a sensação de que estamos diante de uma prévia é cada vez maior.
Entretanto, vez ou outra conhecemos alguns exemplares que abandonam essa ideia. E é justamente de Shazam! e de Deadpool que eu estou falando. Os dois filmes poderiam ser extremamente carregados de surpresas (não tão) escondidas para justificarem sua existência, visto que lidam diretamente com isso.
Porém, ambos sabem que, por mais importante que o easter-egg seja, a história vem em primeiro lugar. E em vez de usar as conexões ao mundo nerd para criarem entraves na trama, ambos sabem contar suas histórias usando esse recurso de suporte.
Em Shazam!, é perfeitamente assimilável que Billy Batson se deslumbre em ser um super-herói, já que seu mundo é povoado por essas criaturas incríveis e isso esteja presente em todos os momentos. Já o charme do Mercenário Tagarela, em Deadpool, é justamente ser tão manjão das referências quanto você.
Eu poderia também passar horas falando sobre outras franquias que também excederam em seu uso de referências e de nostalgia. Muito antes da febre dos super-heróis, a segunda trilogia de Star Wars pagou mico entre o público por viver apenas à base dos filmes originais – algo que estava quase acontecendo na era Disney, como Han Solo: Uma História Star Wars nos confirma.
Outra franquia que também está tendo seus percalços é Animais Fantásticos, a mais recente obra de J.K. Rowling, situada no mesmo universo bruxo de Harry Potter. Quem conseguiu conferir Os Crimes de Grindelwald não sabia se estava vendo um longa original ou uma colagem de “melhores momentos” da franquia original, devido ao número exorbitante – e majoritariamente desnecessário – de easter-eggs e referências.
Ainda assim, devemos nos acostumar. A era dos easter-eggs veio para ficar, mas eles deixaram de ser ovos-de-páscoa-surpresa. Agora, eles são um vendedor vestido de coelho gigante jogando chocolate na sua cara, quer você queira ou não.
Mas os diretores também precisam se ligar que, mesmo com esses fan services, os fãs também não são burros e querem histórias decentes, roteiros inspirados e filmes que falem por si só, não dependendo de um gancho para suas vinte continuações e dezesseis spin-offs para se provarem uma obra cinematográfica de qualidade.
E é justamente por isso que aprecio tanto longas como Shazam! e Deadpool, que conseguem equilibrar esses dois pesos em uma balança calibrada, sem deixar que o público leigo – cada vez menor – fique boiando em uma salada confusa, misturada e cujas surpresas são cada vez menos surpreendentes.
Na galeria abaixo, fique com imagens de Shazam!:
Shazam! está em cartaz nos cinemas.