[CRÍTICA] His Dark Materials, uma série divina e herege!
[CRÍTICA] His Dark Materials, uma série divina e herege!
Fantasia com alta dose de política e religião!
No último domingo, chegou ao fim a primeira temporada de His Dark Materials, uma co-produção britânica entre a BBC e a HBO. A série se propõe a adaptar a saga de livros Fronteiras do Universo, por Phillip Pullman, em uma trama que mistura elementos fantásticos com críticas à teocracia.
Na primeira temporada, conhecemos o mundo de Lyra Belacqua, habitado pelos daemons, criaturas que “personificam” a alma de seus donos, além de conhecermos ursos falantes, bruxas e uma grande conspiração envolvendo o Magisterium. Porém, será que a primeira temporada dá conta dessa história espetacular? Confira a nossa crítica da série aqui!
Créditos: BBC/HBO
His Dark Materials, uma série divina e herege!
Desde o final de Game of Thrones, o público nerd – especialmente os fãs de fantasia – tem procurado “substitutos” para o legado da série da HBO. Um dos lançamentos que despertou a curiosidade desse nicho de fãs foi justamente His Dark Materials, a co-produção da BBC e da HBO que adapta os livros da trilogia Fronteiras do Universo, de Phillip Pullman.
Porém, já de cara percebe-se que esse universo não tem nada a ver com o criado por George R.R. Martin. Em vez de explorar um mundo medieval com a presença de “zumbis” e dragões, esse universo parte em busca de uma história mais complexa, estabelecendo a existência de mundos paralelos e uma grande conspiração envolvendo o Pó, uma partícula que tem ligação com o Pecado Original.
Sim, você leu certo, o Pecado Original. A trilogia de Pullman é conhecida por falar sobre religião e, principalmente, sobre os perigos de misturá-la com a política – a famosa teocracia. E a série não se desvia disso, criando uma trama grandiosa que é focada justamente nas críticas ao modelo organizado da religião, em uma sátira voraz da Igreja Católica.
Antes de tecer uma crítica à série em si, é importante ressaltar que, em 2007, essa história já havia sido adaptada para os cinemas em A Bússola de Ouro, um filme que sofreu duros boicotes do Vaticano e das igrejas, o que foi um dos motivos pelos quais a produção foi completamente mutilada, perdendo todo o significado e as críticas estabelecidas pela obra original.
Felizmente, a nova série da BBC e da HBO não sofreu um ataque parecido, e pela primeira vez os fãs da saga estão podendo ver uma adaptação que realmente aposta nas decisões arriscadas que tornaram os livros tão populares desde seu lançamento. A trama toda gira em torno de Lyra Belacqua, uma menina que se vê no centro da conspiração do Magisterium, que por sua vez quer “acabar com o Pó” no mundo.
Mas esses não são os únicos perigos que surgem no horizonte. Crianças estão sendo sequestradas e tendo seus daemons dilacerados, enquanto a misteriosa Marisa Coulter parece estar por trás de eventos macabros. A partir daqui, Lyra precisa iniciar sua jornada, tanto para resgatar seu amigo Roger, que está desaparecido, quanto para encontrar seu verdadeiro lugar no mundo.
De cara, o que se destaca na série é sua produção monumental. Em termos de efeitos visuais, direção de arte, cenografia e outros quesitos técnicos, His Dark Materials mostra que veio para ficar, com uma ambientação cativante que mistura elementos fantásticos com ficção científica avançada, além de criar um universo rico visualmente e cheio de mistérios que são descobertos aos poucos.
E dá para perceber que a série não poupou despesas, só olhando para seu elenco. James McAvoy e Ruth Wilson são nomes consolidados, que aparecem aqui com muita presença e que devem ter seus papéis ampliados no futuro. Aliás, é importante ressaltar o quanto a série manda bem justamente por conta de seu elenco, que não está menos que formidável.
Os aplausos vão para Dafne Keen. A atriz – um dos destaques de Logan – aqui mostra um papel mais encorpado, que cresce aos poucos. De início, é até compreensível achar que Lyra não está confortável em sua jornada – mas esse é justamente o propósito da atriz. James McAvoy tem uma presença imponente como Lord Asriel, seja por suas atitudes ríspidas ou por seu jeito grosseiro – e até mesmo por seu daemon, a imponente Stellmaria.
Porém, duas figuras realmente arrancam momentos grandiosos da produção. Ruth Wilson brilha como Marisa Coulter, em uma performance que vai ficando gradativamente sentimental e complexa. A atriz não faz uma vilã corriqueira. Ela definitivamente está no lado “do mal”, mas suas ações (e as consequências delas) são sempre justificáveis e carregam um peso descomunal sobre a personagem.
Quem também brilha é James Cosmo no papel de Farder Coram. À primeira vista, ele é um mentor mais velho que representa uma etapa da jornada de Lyra, mas aos poucos sua história – especialmente seu passado ao lado de Serafina Pekkala – vai se desabrochando, mostrando um lado muito mais trágico de um personagem que representa o líder de um povo minoritário.
Ah, e o elenco de vozes também não está para brincadeira. Iorek Byrnison, o urso de armadura que se torna um dos principais aliados da protagonista, é vivido brilhantemente por Joe Tandberg, enquanto Pantalaimon, o adorável e inseparável daemon de Lyra, passa toda a “fofura” do personagem através da voz de Kit Connor. Os dois personagens foram criados com efeitos digitais impecáveis.
Em relação à sua narrativa, His Dark Materials pode parecer uma série “parada” e “lenta” para alguns, mas isso é porque o drama se manifesta aos poucos, conforme Lyra vai compreendendo mais do mundo em que vive e percebe todas as implicações causadas pelo Magisterium. O ritmo é similar ao do livro, com pouca ação e muitos momentos onde os personagens interagem através de longos diálogos e conversas.
Isso não tira mérito algum da narrativa, que nunca beira o monótono. Cada episódio nos presenteia com alguma revelação grande ou algum detalhe que é tratado com mais cautela nos capítulos seguintes. Além disso, é uma série que não se poupa dos momentos dramáticos – e a prova mais concreta disso está no episódio que adapta um dos capítulos mais tristes e densos do livro, envolvendo um “garoto fantasma”.
E para os fãs da trilogia, é um alívio saber que a BBC está empenhada em dar continuidade a essa narrativa. A segunda temporada já foi confirmada, mas o segundo livro da saga, A Faca Sutil, já começou a ser adaptado, com a inclusão pontual de Will Parry, um personagem que assume o protagonismo ao lado de Lyra. Vivido por Amir Wilson, o herói é idêntico ao dos livros, o que nos deixa ainda mais ansioso para o segundo ano da série.
Ainda assim, a série não é livre de defeitos – alguns que se intensificam para quem já conhece a obra literária. Por exemplo, o papel de Serafina Pekkala – vivida por Ruta Getmintas – é muito limitado, e sua presença causa confusão no espectador mais leigo. Já o personagem vivido por Lin Manuel Miranda, Lee Scoresby, não tem tanto entrosamento com o resto do elenco, por mais que Miranda faça o máximo para provar seu carisma.
Narrativamente, há alguns deslizes aqui e acolá. A decisão de começar a adaptar A Faca Sutil desde já acaba se provando uma faca de dois gumes (perdão pelo trocadilho), já que as cenas envolvendo Will e o perigoso Lord Boreal quase sempre comprometem o ritmo da “trama central” protagonizada por Lyra e seus aliados. Há também alguns problemas em relação à adaptação do Povo Gípcio e seu papel na trama.
Já na parte técnica, são poucos os momentos realmente decepcionantes. Destaco apenas o penúltimo episódio, que nos apresenta o derradeiro conflito entre Iorek Byrnison e Iofur Raknison. O capítulo apresenta uma montagem muito truncada, diferente dos demais episódios, deixando a guerra dos ursos de armadura sem tanto peso ou impacto narrativo.
Mas isso, obviamente, são problemas que podem ser (e que provavelmente serão) tratados nas próximas temporadas. Em seu ano de estreia, His Dark Materials já nos deu o mundo – ou melhor, os mundos – ao nos apresentar um universo rico e divinamente herege, cheio de questões relacionadas ao Pó, ao Magisterium e até mesmo à figura toda-poderosa conhecida como Autoridade.
Que o nível se mantenha e que a série possa se encontrar num caminho similar à trilogia de Pullman, tratando de política e de religião de uma forma ácida e crítica, mesmo em uma franquia destinada para leitores mais jovens. Em sua primeira temporada, a série provou que consegue fazer isso com muito louvor, indo até os limites para criar um universo fantástico que discute problemas reais.
2019 termina com um saldo positivo. His Dark Materials é uma grande aposta justamente por ser diferente de tudo que vemos na televisão atualmente. Não vá esperando a “nova Game of Thrones“, pois vai se decepcionar. Em vez disso, abrace a série pelo que ela é: uma jornada de fantasia e ficção científica, explorando os limites da maldade humana e os perigos da teocracia.
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