[CRÍTICA] Doutor Sono – De volta ao Hotel Overlook!

Capa da Publicação

[CRÍTICA] Doutor Sono – De volta ao Hotel Overlook!

Por Gus Fiaux

Quase quarenta anos após o lançamento de O Iluminado, a sequência finalmente chega aos cinemas na forma de Doutor Sonoo mais novo longa que sedimenta a parceria entre Stephen King e o diretor Mike Flanagan. O longa segue a jornada de Dan Torrance, já adulto, precisando salvar uma menina iluminada de um culto perigoso e sinistro que devora a essência vital de crianças com habilidades especiais.

O filme aposta em unir tanto o filme original de Stanley Kubrick, lançado em 1980, com a mitologia criada por King em seus livros – uma combinação um tanto ousada, que rende seus frutos certeiros, além de mostrar como Mike Flanagan é, sem a menor sombra de dúvida, um dos melhores diretores de horror dessa geração. Confira a nossa crítica do filme a seguir!

Créditos das imagens: Warner Bros.

Ficha Técnica

 

Título: Doutor Sono (Doctor Sleep)

 

Direção: Mike Flanagan

 

Roteiro: Mike Flanagan

 

Ano: 2019

 

Data de lançamento: 7 de novembro (Brasil)

 

Duração: 151 minutos

 

Sinopse: Anos após os eventos de O Iluminado, o já adulto Dan Torrance conhece uma jovem garota com poderes similares aos dele, e precisa protegê-la de um culto sinistro conhecido como O Verdadeiro Nó, que caça e se alimenta de crianças iluminadas.

Doutor Sono – De volta ao Hotel Overlook!

O Iluminado é, até hoje, uma das histórias mais aterrorizantes que já encontrou seu lugar na cultura pop. O livro de Stephen King, publicado originalmente em 1977, fez tanto sucesso que logo foi transformado em filme por um dos maiores gênios do cinema, Stanley Kubrick, em 1980. No entanto, quem conhece um pouco dos bastidores dessa adaptação sabe que King não apenas detestou o filme de Kubrick, como também fez questão de falar mal do cineasta diversas vezes.

Ainda assim, em 2013, King decidiu retornar a esse universo em uma sequência, intitulada Doutor Sono, após receber centenas de perguntas de fãs questionando o que teria acontecido com Danny Torrance após os eventos tenebrosos vividos no Hotel Overlook. A resposta é clara: ele se tornou um alcoólatra, e quando finalmente tenta se recuperar do vício herdado de seu pai, acaba encontrando uma menina iluminada chamada Abra Stone, que precisa de sua ajuda para deter um culto macabro conhecido como O Verdadeiro Nó. 

E agora, Mike Flanagan finalmente lança a sua própria versão dessa história, fazendo o que muitos julgavam ser impossível: unir a visão de King e Kubrick em um filme que é, essencialmente, autoral e que carrega toda a sua assinatura. De muitas formas, Doutor Sono não apenas é a adaptação perfeita do livro homônimo de King, como também é a sequência digna d’O Iluminado de Kubrick. E por conta disso, é um dos melhores filmes de horror de 2019.

A história segue de perto vários núcleos diferentes. De um lado, temos Danny – ou melhor, Dan Torrance, que precisa mudar completamente seu estilo de vida para salvar sua alma da luta que seu pai perdera há mais de trinta anos. Do outro, Abra Stone, uma menina iluminada com um poder bruto que supera até mesmo o que Dan tinha quando criança. E no meio dos dois, floresce o Verdadeiro Nó, liderado por Rose, a Cartola, uma espécie de “vampira imortal” que precisa se alimentar do “vapor” liberado por crianças iluminadas ao serem torturadas.

Já de início, o que conquista o público são as brilhantes atuações por parte de seu elenco principal. Ewan McGregor caiu como uma luva para o papel do filho de Jack Torrance. Mesmo sendo sério e introvertido, ele consegue demonstrar todos os demônios internos que o homem precisa enfrentar, em um papel dolorosamente real. Já a jovem Kyliegh Curran interpreta Abra com uma sagacidade furiosa. Ela consegue transmitir completamente o papel de uma menina inocente cuja alma é manchada por testemunhar eventos hediondos.

Porém, o grande destaque vai para Rebecca Ferguson. Sempre acostumada ao papel de femme fatale, a atriz aqui entrega uma versão subvertida desse arquétipo. Rose, a Cartola não deixa de ser uma mulher poderosa e ambígua, mas de uma maneira muito mais cruel e sádica. E ainda assim, ela possui uma motivação forte o suficiente para que acreditemos em sua jornada, o que justifica até mesmo seus traços mais caricatos. Definitivamente, uma das melhores vilãs do cinema neste ano.

Os “problemas” de Doutor Sono, no entanto, não são exclusividade do filme, já que descendem diretamente da história que Stephen King escreveu em 2013. Por seguir fielmente a visão do autor, ao menos em seu começo, o filme possui um ritmo bem truncado, e só a “introdução” dessa história demora mais de quarenta minutos – um tempo considerável, levando em conta que o filme possui duas horas e meia de duração. Ainda assim, não vejo de que outra forma Flanagan poderia apresentar todos os personagens em uma narrativa coesa que fizesse jus ao livro.

Mas, no fim das contas, isso é justamente o que torna o longa, da metade para o final, tão envolvente e brutal. Ao fazer com que conheçamos todos os personagens a fundo, o filme estabelece um senso de urgência sufocante, que leva ao clímax perfeito que representa justamente essa união entre Kubrick e King. Aliás, é preciso dizer que o longa conta com imagens brutais e sanguinárias, como a tortura e morte de um menino iluminado, que é justamente o ponto de virada que dá início à trama principal.

E tudo isso se deve à maestria de Mike Flanagan com o gênero do horror. O cineasta já se provou um grande mestre desse tipo de narrativa, vide seus filmes anteriores como O Espelho, Ouija: A Origem do Mal e até mesmo a outra adaptação de Stephen King, Jogo Perigoso. Porém, Doutor Sono está um pouco mais próximo de outra obra do cineasta, a série A Maldição da Residência Hill, que concilia o fantástico hediondo a um drama familiar muito pesado. De certa forma, o que motiva Doutor Sono é justamente o drama, e não o horror.

Mas isso em momento algum quer dizer que Flanagan deixa de lado elementos do terror. Mesmo que o filme não dependa do clichê do jump scare, trata-se de uma trama assustadora, que explora temas diabólicos como demônios internos, fantasmas do passado e principalmente a maldade no coração dos homens – coisas que foram abordadas tanto no livro quanto na adaptação de O Iluminado. As cenas mais “aterrorizantes” não causam sustos baratos, mas nos deixam com uma sensação ruim e um agouro de tragédia.

Boa parte disso se deve aos aspectos técnicos. A fotografia é quase transcendental. Quando olhamos de perto, ficamos até em dúvida se esse filme é contemporâneo ou resgatado do passado, já que as imagens possuem um charme antigo – que é sempre ressaltado pelo diretor, em uma de suas várias homenagens ao clássico de Kubrick. Porém, a cereja do bolo está na trilha sonora. Ela é sufocante, sinistra e atmosférica, criando uma tensão que cresce a cada som mais grave que inunda os ouvidos do público.

Além disso, o diretor também consegue explorar nuances interpretativas de sua própria narrativa, de modo a sempre surpreender o público. Mesmo quem leu o livro de Stephen King está sujeito às surpresas que a adaptação pode causar, já que a trama carrega em si a essência, mas não os mesmos acontecimentos que o livro – o que é mais explícito a partir do segundo ato, onde a trama se separa do livro e começa a fazer suas próprias reviravoltas, entregando um final doloroso e, ao mesmo tempo, satisfatório.

O clímax, obviamente, é o momento que reúne todos esses elementos, e que explicita não apenas a homenagem ao filme de Kubrick, como também a reverência à obra de King. Como muitos sabem, no livro d’O Iluminado, o Hotel Overlook é destruído, transformado em cinzas graças à explosão da caldeira. Em Doutor Sono (o livro), o confronto final acontece no terreno onde um dia foi o hotel assombrado. Como no filme de Kubrick, o hotel permanece intacto após a morte de Jack Torrance, nós retornamos a ele no novo longa.

E é aqui que os fãs do livro e do filme vão entrar em êxtase. A cena não é apenas cheia de referências e ligações visuais com o longa de 1980, como também apresenta vários elementos do livro de King que foram omitidos da obra de Kubrick. O encerramento, por si só, não apenas adapta Doutor Sono, mas dá uma conclusão para a trama de O Iluminado, de uma forma sincera e grotesca.

Porém, o que realmente torna Mike Flanagan um gênio é perceber que ele próprio não é Stanley Kubrick nem Stephen King. Apesar das diversas referências, o diretor imprime sua própria marca no filme, e a prova disso é que mesmo os flashbacks que remetem a momentos de O Iluminado não tentam “copiar” por completo o filme original. Os atores que interpretam Wendy e Danny Torrance no hotel, por exemplo, não são maquiados para ficarem idênticos aos astros do filme de Kubrick, e isso mostra como Flanagan está disposto a deixar sua própria marca nessa história.

Mas isso também não quer dizer que o clímax não seja isento de problemas. Após uma construção em slow burn de toda a trama, o filme acaba ficando muito acelerado e apresentando elementos que não fazem tanto sentido, além de trazer um número maior de jump scares e sustos premeditados – o que realmente faz com que parte do clímax perca um pouco a força. Ainda assim, Flanagan consegue amarrar as pontas soltas em uma cena final que é bela e sincera, mostrando como é um diretor que se importa com as relações humanas, mesmo no horror mais grotesco.

Tudo isso transforma Doutor Sono em uma experiência extremamente bonita e satisfatória. Mesmo com seus problemas de ritmo e foco – afinal de contas, são muitos núcleos e personagens que precisam ser conciliados -, o filme ainda assim estabelece seu próprio território e serve como uma adaptação extremamente fiel, mesmo com muitas coisas sendo modificadas em relação ao livro. Tudo isso porque Flanagan não apenas deseja traduzir a história: ele apenas entende a essência por trás dela.

Apesar disso, um aviso precisa ser dado: apesar de ser uma continuação de O Iluminado, não espere a mesma atmosfera claustrofóbica ou os mesmos desenrolares narrativos do primeiro filme, muito menos o brilhantismo simbólico de Kubrick, já que é algo que, apesar de homenagear, Flanagan nunca se propõe a fazer. De muitas formas, Doutor Sono funciona como uma experiência complementar e única. Quem assistiu ou leu a O Iluminado provavelmente vai gostar, mas quem não o fez deve se empolgar tanto quanto.

Com atuações sensacionais, uma trama sufocante e madura, e um diretor que tem mostrado cada vez mais a que veio, Doutor Sono é um filme para ser lembrado. Em um ano em que tantas adaptações de Stephen King decepcionaram, devido às expectativas altas por parte do público, o novo filme de Mike Flanagan surge justamente como uma carta na manga, uma das melhores obras baseadas em um livro do Mestre do Horror.

Um filme adulto, violento e brutal, que não deve em nada ao clássico de 1980, o longa é realmente a realização de uma visão que muitos julgavam improvável, conciliando o fogo de King ao gelo de Kubrick. Um dos melhores filmes de horror do ano, e uma experiência sensitiva que brinca com a nostalgia e a subverte, concedendo um final definitivo para a saga da Família Torrance. A pergunta que fica é: você está pronto para voltar para o Overlook?

Na galeria abaixo, fique com fotos e cartazes do filme:

Doutor Sono está em cartaz nos cinemas.